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terça-feira, 29 de junho de 2010

Para não perder o trem...

...das terças-feiras, estou postando hoje um texto da nova safra.
Espero que gostem apesar do tom mórbido...






UM CEGO EXILADO NA BEIRA DO MAR




“Senti de repente a memória queimar,
Perdi os caminhos, a chave perdi,
E desde esse dia, sem nada me vi,
Um cego exilado na beira do mar”
Ariano Suassuna



De onde vem esse cheiro? É cheiro de leite azedo. Estou sentindo o gosto também, parece leite materno. Esqueci do adoçante. E esse ombro com blusa de lã verde? É o ombro de meu pai? Ele está me carregando no colo? O médico disse centenas de vezes que ele não pode fazer esforço, carregar peso...e porque estou agora deitado de costas? O que são esses objetos coloridos sobre a minha cabeça? Não consigo alcança-los...que vontade de chorar, berrar, chamar a atenção de alguém...estou com dor de barriga, estou com fome, acho que me mijei...que estranho...

E essa bola pulando na minha frente? Vou chutar pro gol. Foi gol!!! Quem são esses garotos correndo em minha direção e me abraçando? Os rostos são familiares, mas e os nomes? E esse barro todo no meu tênis? O que é isso que estou calçando? Conga??? Meu bolso está cheio de coisas. Bolas de gude, chiclete ping pong sabor tutti fruti, moedas...um maço de roliúde amassado com quatro cigarros dentro e eu fumando isso, que gosto estranho, que vontade de tossir...


Está tocando Imagine do John Lennon? Quem é essa menina dançando comigo? Virei pedófilo? Ela está tentando me beijar...diz que quer namorar? To fora! Quem são esses meninos tomando cuba libre? Cadê a mãe deles que não vê isso? E esses brigadeiros espalhados na mesa? Esse bolo em forma de campo de futebol com uma velinha acesa, imitando um jogador do meu time? Mas que time é mesmo?


Está crescendo muito pelo no meu corpo. Nossa, que sensação boa dirigir um automóvel. Cheiro de carro novo. Mas é um corcel 73? Que sensação mais maravilhosa ainda beijar essa mulher...não...meu Deus! É apenas uma menina e eu com a mão nos peitos dela! Ninguém está vendo? Como é bom transar, que sensação maravilhosa! Onde estou? Que cama redonda é essa? Estou sem camisinha. Quem é essa outra moça que diz que me ama? Ela usa DIU? Não? Puta que pariu. Fodeu! Falar com o pai dela? Cacete, que merda! Nasce quando? Porque estou careca? Universidade o que? Diploma? Gritaria? Minha mãe está chorando. Quem é esse bebê no meu colo?


Meu filho quebrou o que? Pagar? Eu? Quem é esse cara que fica mandando eu fazer isso e aquilo? Grávida de novo? Justo agora? Quem são essas pessoas de gravata nas mesas ao lado? Financiamento? O que é BNH? Quem é esse tal de Olerite? Minha cabeça está explodindo. De onde vem todas essas imagens, essas sensações familiares?


O que você quer dizer com divórcio? Pode ficar com a casa da praia. Só vou ver meus filhos no sábado? Porque essa ruiva está me beijando? Casar de novo? Não. Tchau. E essa morena? E esse bar, esses amigos, essas quantidades absurdas de uísque? Cadê meu carro? Pode levar tudo menos os documentos e tira esse revólver da minha cara que eu tenho dois filhos.

Cacete, quanto exame! Urina, sangue, fezes, ultrassom, cateterismo...cirurgia? Pôrra, porque? O que tem meu coração? Fritura, álcool, cigarro, não pode nada??? Engordei, emagreci, aposentei???
Fiquei com o saco cheio? Fluoxetina? Isordil? Viagra não pode??? Mas porque eu iria querer morar num flat? Ou num sítio? Estou bem aqui sozinho. A Cida cozinha e limpa bem. Quem é Cida? Onde estão meus filhos? E essa dor no peito que não passa?


Estou pensando nisso tudo há horas. Mas apenas alguns segundos se passaram. Estranho. A dor está piorando. Parece que tem um ônibus estacionado no meu peito. Cadê minha mãe? Há quanto tempo não dou um beijo nela? O que estou fazendo no chão? Quem vai me ajudar? Os pensamentos estão indo embora. Há quanto tempo não converso com meu pai? Parece que meus neurônios estão desligando um a um. Apaga essa luz forte aê!!! O que são neurônios? Cadê meus filhos? Como é mesmo o nome deles? O que são filhos.........

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Coluna no Tulípio!

Mais um texto veiculado na minha coluna no site do Tulípio, cujo endereço está na minha penúltima postagem. Visitem!



VENDE-SE MEIO SAMBA.



Já ouvi o presente causo contado por Beth Carvalho e Carlinhos Vergueiro, em momentos distintos e com algumas diferençazinhas aqui e ali. Esta é uma versão intermediária, que pinça verdades nas duas anteriores para compor um honroso um a um.

Compor em parceria sempre foi uma história complicada. Pior do que casamento de marido beberrão com mulher dadeira. Pois em priscas eras a coisa era ainda pior. Época em que se vendia um samba para garantir o almoço do dia seguinte, época em que a legislação autoral ainda borrava as fraldas. Hoje engatinha. Pois é fato que naquele tempo a maneira de se compor em parceria era um pouco diferente. Não era comum um parceiro fazer a letra inteira e passar ao outro para musicá-la, ou vice-versa. A praxe era que um fizesse a primeira parte do samba, música e letra, e entregasse ao parceiro para que este fizesse sozinho a segunda parte, ou terceira. Foi nesses moldes que um dia os saudosos Cartola e Nélson Cavaquinho compuseram um samba que até hoje permanece inédito. Não porque não fosse bom, fato impossível a se considerar o calibre de ambos, mas porque foi motivo de clima ruim entre os dois.

Permanecendo inédito, como já se disse, o tempo passou e Cartola acabou esquecendo da existência do pobre samba. Até um determinado começo de noite em que, bebericando incógnito num canto qualquer, na época em que ainda era um mero pintor de paredes, ouviu um sujeito forte e bem vestido cantarolando “aquele” seu samba com o Nélson, inteirinho, palavra por palavra, numa mesa ao lado. Imediatamente foi até o grandalhão e perguntou de quem era a autoria, já prevendo o pior. O sujeito respondeu numa entonação de não permitir dúvida: “É MEU”!!!

Pêdavida, Cartola engoliu ar e foi ao encalço do parceiro. Assim que o encontrou já foi perguntando de longe: “Nélson, você por acaso vendeu aquele nosso samba, pôrra”?! Ao que Nélson, sem tirar os olhos do copo, respondeu com voz emborrachada: “Só a minha parte”!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Mais um poeminha!

Hoje, para não dizerem que não falei das flores, mais um poeminha de amor novo/antigo escrito em um momento de impasse. Mas vale.



AMAR É...


É preciso alertar os filósofos do “amar é”
É necessário dizer que o amor incomoda
Preenche espaços como quem invade.
É preciso observar que a maré
Não está para peixe nem nada que nade.

É preciso ver que o amor não é tão bonito,
Que causa dor, desprezo, inveja,
Que faz da vida interminável conflito,
Por mais bonito que o início seja.
O amor é um sentimento aflito

É preciso gritar que o amor também mata
Como a vida, de desespero, descontrole, tédio.
É nó que ata mas desata no ato
E fica uma doença que não tem remédio.
O amor é um sentimento chato.

sábado, 19 de junho de 2010

site do Tulípío!

Para aqueles que ainda não sabem, apesar de amplamente divulgado por este que vos tecla, mantenho uma coluna no site do TULÍPIO, imortal personagem criado pelo amigo Eduardo Rodrigues e que tomou vida através do desenho de Paulo Stocker. O endereço é http://tulipio.uol.com.br/
Esta coluna, chamada "O Samba na Realidade", conta histórias verdadeiras dos grandes mestres da música brasileira. Vou postar algumas aqui, para quem ainda não leu lá.



ADONIRAN E OS GALINÁCEOS

Contava Dona Mathilde Rubinato, quando já viúva do saudoso Adoniran Barbosa, que este adorava comer macarronada com frango assado todos os domingos, chovesse canivetes abertos ou fizesse sol. Mas a particularidade é que Adoniran, por capricho ou apego às tradições do interior, preferia ir comprar o frango ainda vivo, para assassiná-lo com um pescoção no aconchego de seu vasto quintal.

Ocorre que Dona Mathilde conhecia muito bem seu marido e por isso mantinha no congelador um frango previamente decapitado, depenado e comprado no mercadinho mais próximo. Isso porque, todo o santo domingo, Adoniran ia até a granja, comprava o frango mais bonito do corredor da morte e o trazia para casa debaixo do braço, bem apertado, para evitar que o bicho batesse as vigorosas asas e escapasse, como é direito de qualquer prisioneiro prestes a ser impiedosamente executado. No caminho para casa, porém, Adoniran vinha conversando animadamente com o animal, ainda que este não lhe respondesse palavra, por incapacidade ou por paúra. Fato é que se afeiçoava ao bicho, lhe colocava um nome e, como era de se esperar, não tinha coragem mais de matá-lo. Dona Mathilde já sabia que, ao chegar em casa, Adoniran lhe diria: “Velha, prepara o falecido porque a Jurema eu não vou matar não”! E era o que de fato acontecia.

Uma vez que a farsa se repetia todos os domingos, do quintal de Dona Mathilde já não se via o chão, tamanha a quantidade de galinhas ciscando e fazendo as suas franguices. Adoniran, satisfeito, brincava e conversava com elas, acariciava-as e chamava cada uma pelo nome, que apenas ele conhecia e distinguia. E a conta do milho subia consideravelmente.

terça-feira, 15 de junho de 2010

oração.

Se um dia, algum desavisado alto mandatário de uma religião organizada me desse a difícil incumbência de criar uma oração, talvez eu criasse uma igual a esta, que não privilegia este ou aquele ícone religioso mas a humanidade e seus percalços, como expressão máxima da divindade na face da terra.




ORAÇÃO

Que forte faça-se a brisa,
Brandos os bandos de aves.
Que os tiros atinjam as traves
E leves levitem as ogerizas.
Que, compreensivos, comparemos as eras.
Taxativos, taxemos o ódio.
Abnegados, abdiquemos do pódio
Pródigo das onipotentes esferas.
E belos, embelezemos os luares
E o ar e o dia e os anos
E as lavouras, os sorrisos e os olhares.
Que possamos perfumar os danos
E pluralizar as alegrias singulares
E mereçamos a alcunha de humanos.

domingo, 13 de junho de 2010

Trilha sonora.

Este último conto deve ser lido com o acompanhamento desta trilha sonora maravilhosa!

http://www.youtube.com/watch?v=qTlyG_R6eh4&feature=related

sábado, 12 de junho de 2010

Autobiografia.

Em tempos de Copa do Mundo (que maravilha!), posto hoje um conto baseado em fatos reais e autobiográficos, alusivo ao tema.




O SEQUESTRO DO PONTA ESQUERDA



Esta história se baseia numa premissa inteiramente falsa. Pra começo de conversa, destaque-se que o seqüestrado em questão não era ponta esquerda de quatro costados. Quando muito, um meia esquerda improvisado na ponta, num time de muitos craques, posto que se assim não fosse, certamente não encontraria guarida naquela constelação de gênios. Em segundo lugar, não se pode também falar em seqüestro, sendo que nem resgate foi pedido pelo meliante. Além disso, a vítima não era uma pessoa de carne e osso mas sim um mero objeto e pequeno de caber em qualquer bolso, o que automaticamente desclassifica o delito de seqüestro para o de um mero furto, teoricamente menos grave. Apenas teoricamente, mesmo porque a teoria não contempla o valor da “res furtiva”, analisado por vieses subjetivos e passionais.

Isto posto, passa-se à análise do caso, não sem antes empreender uma viagem temporal ao longínquo mês de agosto de 1970. Pois é certo que nesse tempo, de agruras militares e torturas milenares, o menino Carlos Augusto, ou simplesmente Cacau, como lhe alcunharam os moleques daquela rua tranqüila e simpática da paulicéia, contando com incompletos 11 anos, sonhava apenas com a Copa do Mundo do México, recém terminada com um retumbante sucesso da seleção canarinho. As únicas imagens que lhe preenchiam a memória visual eram as dos 19 gols marcados nos seis jogos que a seleção brasileira vencera rumo ao tri, tanto que decorou as jogadas na mente e elas ficariam indelevelmente marcadas até o fim dos seus dias. Os sons que recordava e repetia sem cessar, em altos brados para desespero dos pais, eram aqueles criados pelo imortal Geraldo José de Almeida, com erres exagerados ao narrar os jogos: “QUE BOLA BOLA” ! “PORRRR MUITO POUCO, MUITO POUCO, POUCO MESMO” ! “OLHA LÁ,OLHA LÁ, OLHA LÁ, NO PLACAAARRRRRRRRR”!

Fato é que, por aquela época, uma conhecida indústria de brinquedos lançou um jogo de futebol de botão com a seleção tricampeã do mundo. Cacau, já apaixonado pelo jogo de botões, viu aquela reluzente equipe amarela transformar-se imediatamente em seu mais intenso sonho de consumo. Estudou, cortou grama, lavou o carro do pai, foi comprar pão, tratou a irmã caçula com carinho, comeu salada e fez promessa. Tudo para conseguir seu intento. E acabou conseguindo. Ganhou do pai, em reconhecimento tardio, num dia qualquer, sem que fosse aniversário, um pacote transparente com os sonhados onze “cracks” dentro. São os melhores presentes os inesperados. Aquele time de botão representava para ele seu melhor e definitivo brinquedo. O brinquedo de sua vida. Em segundo lugar, longe, muito longe, vinham o autorama, que lhe custou várias visitas aos avós, e o Forte Apache, naquela altura já com várias falhas nas paredes de madeira, índios e soldados carcomidos pelos incipientes dentinhos da irmã e cavalos pernetas.



Abriu sofregamente o pacote dilacerando o plástico da embalagem e conferiu, astro por astro, a escalação. Eram botões com a foto pretebranca dos jogadores. Lá estavam eles. Félix, o goleiro, com suas longas e espessas costeletas, baixo, magro e fraco tecnicamente, mas um goleiro necessário apesar de sua preferência recair em Ado ou Leão, os reservas. Não era um goleiro tipo “caixa de fósforo com pilha dentro”, como Cacau costumava confeccionar. Apenas uma chapinha de plástico com a foto colada e uma haste de metal atrás para movimentá-lo. Melhor partir logo para a linha. Brito, zagueiro, com a barba sempre mal feita. Inevitável perceber o quanto era chegado nuns goles. A expressão bovina denunciava, mas naquele tempo Cacau ainda não a reconheceria. Wilson Piazza, meio de campo do Cruzeiro daquela lendária safra, cuja estrela maior, Dirceu Lopes, sequer havia sido cogitado na convocação derradeira. Piazza agora era improvisado como zagueiro, coisa que nunca foi, cedendo à infinita criatividade daquela comissão técnica biônica e milica. Everaldo, lateral gaúcho/macho, precocemente falecido num acidente automobilístico após a Copa e Carlos Alberto, o “Capita”, lateral direito de larga qualidade, de Santos e Fluminenses, cujo gesto de levantar com as duas mãos a pequenina e extinta Jules Rimet era freqüentemente imitado por Cacau, usando o copo do liquidificador de sua mãe, imaginando o Azteca lotado, aplaudindo-o por horas a fio. Esse som da turba Cacau imitava perfeitamente, abrindo a boca e lançando ar sem nenhum som.

Defesa completa, partir para o meio de campo e ataque era uma verdadeira covardia. Era o time dos sonhos, considerado bem mais tarde como o maior time de todos os tempos. Clodoaldo, ou “Clodô”, valente médio volante, ou como se chama atualmente, “volante de contenção”, era um craque. Gérson, com sua calva formando um triângulo invertido no cucuruto, imitado em 2002 por Ronaldo Fenômeno (ninguém notou?), e seus passes de 40 metros nem se fale. Pelé, com seu cabelo tipo “americano 1”, dispensa qualquer comentário que acrescente algo aos compêndios já escritos e falados. Jairzinho, o “Furacão da Copa”, no cume de sua forma e de seu futebol. Doutor Tostão, antes da bolada no olho que o afastou dos campos, talvez o melhor complemento ao futebol do Rei, o queijo minas que colava à goiabada cascão e produzia o melhor “romeu e julieta” já visto. E finalmente Rivelino, inexplicavelmente sem bigode, o meia improvisado como ponta esquerda, móvel desta história, com sua indefensável “patada atômica” como se dizia na época. O time estava deliciosamente completo!


Cacau telefonou imediatamente para todos os amigos da rua e marcou um campeonato para o dia seguinte no Estádio Augusto Lima, o popular “Gutão”, sendo que Gutão era seu vizinho da frente e o Estádio propriamente dito era a mesa de jacarandá de Dona Lídia, mãe de Gutão, apenas utilizado em ocasiões especialíssimas, como finais de campeonato ou jogos de revanche. Era o “Maracanã” deles, mais por suas especificidades propícias ao futebol de mesa, assim como as largas medidas e a capacidade de deslize, do que pela disposição de Dona Lídia em ceder a sua centenária mesa de jantar. Na verdade, os meninos em mutirão enceravam a mesa após as partidas porque Dona Lídia não tinha a menor idéia de que ali eram realizadas disputadas porfias. Uma marca de dedo naquela mesa, que pertencera à sua bisavó portuguesa, significaria para Gutão um mês sem sobremesa, talvez dois sem televisão.
Reprimenda tão cruel merece um parágrafo a parte. Ficar sem televisão naquela época, para Cacau, Gutão e companhia bela, todos na casa dos 10, 11 anos, significava perder os grandes jogos de futebol, nos quais, num domingo ruim, se via em ação Pelés, Edús, Leões, Ademires da Guia, Rivelinos, Gersons, etc, etc, e ficar também sem “seguir” as novelas Pigmalião 70 e, principalmente Irmãos Coragem. Todos costumavam cantar “Irmãos, é preciso coragem...” e gostavam de João Coragem e de Jerônimo, às voltas com a prima Potira (assunto bacana para um garoto). Mas todos se identificavam mesmo com o personagem Duda, interpretado por Cláudio Marzo, que além de ser jogador do Flamengo na trama, desfrutava invariavelmente da companhia de Ritinha e de outras belas moças. Este último assunto, definitivamente, já os interessava naquela altura, tanto ou mais do que o futebol. Mal sabiam que iria interessá-los pela vida afora e quantas besteiras fariam, no futuro, em nome disso.


Fato é que o campeonato foi combinado convenientemente no horário em que Dona Lídia iria ao cabeleireiro e às compras. Na hora marcada estavam todos lá. Gutão, o dono do “campo”, com seu quase imbatível time do Santos, feito com capinhas de relógio pintadas a mão, Beto, com seu time misto de botões de casaco e outros jogadores “negociados” nas ruas do bairro, Juvandir, que também respondia pela alcunha de Vandinho, com seu reluzente Flamengo vendido em pacotes, um a um, nas bancas de jornal e Cacau, com sua seleção canarinho tinindo de nova.


Sorteios de grupos feitos, o Santos de Gutão ganhou do mistão do Beto por 1 a 0 e Cacau goleou o Flamengo de Vandinho por 2 a 0, gols de Pelé e Rivelino. Gutão e Cacau foram para a final e Cacau venceu por 2 a 1, gols de Jairzinho e novamente Rivelino, com um chute indefensável que bateu na trave e entrou, eleito o craque do torneio. Os placares eram baixos porque os jogos duravam apenas 5 por 5 minutos, fruto da paúra que os garotos tinham de que Dona Lídia esquecesse algo em casa e voltasse mais cedo, irrompendo na sala e pegando todos em flagrante. Terminados os jogos, todos guardaram seus botões rapidamente e foram para suas casas, a tempo ainda de assistir “Perdidos no Espaço” e de fazer a lição de casa.


Após o jantar em família, em que Cacau narrou entusiasmadamente ao pai todas as grandes jogadas que praticara naquela proveitosa tarde e engolida a última colherada do arroz doce, que odiava e a mãe insistia em fazer de sobremesa, voou para seu quarto para treinar chutes a gol com seu time recém campeão. Assim que abriu sua caixinha de botões algo lhe disse que faltava um. Procurou todos os botões amarelos e constatou com um arrepio na espinha que Rivelino não estava mais entre eles. Imediatamente telefonou para Gutão e o desespero em sua voz era evidente. Não, Rivelino não estava lá, perdido em algum canto, muito embora Cacau tivesse obrigado Gutão a procurá-lo pelo menos umas dez vezes. Então a resposta era óbvia: irritado com a retumbante vitória de Cacau, alguém surrupiara a revelação do torneio, justo ele, por pura e terrível vingança, ou para evitar novas derrotas no futuro. Os suspeitos eram apenas dois, já que Cacau confiava cegamente em Gutão: Vandinho ou Beto. Ou os dois, em conluio criminoso!

Durante toda a manhã seguinte, na escola, Cacau pensou em planos de vingança e recuperação do precioso jogador. Cogitou esfaquear os amigos com um abridor de cartas que ganhara de uma tia, pagar resgate com figurinhas carimbadas, chicletes Adams e outros gêneros de primeira necessidade, implorar a devolução do botão ou até mesmo surrupiá-lo de volta, mas foi o valoroso companheiro Gutão quem lhe sugeriu a solução definitiva. Argumentou que não poderiam criar um clima ruim com Vandinho e Beto, caso contrário não poderiam mais convidá-los para futuros campeonatos e não teriam quem golear, já que os dois jogavam muito menos do que eles. Além disso, o pai de Beto era alto funcionário da Kibon e seus aniversários eram concorridíssimos, com farta distribuição de sorvetes e chocolates. Perder essas festas seria o cúmulo da exclusão social e gastronômica. Isso era impossível suportar. Assim sendo, tinham que pensar em uma saída mais honrosa e menos traumática. Gutão revelou a Cacau que dois dias antes estivera na sessão de brinquedos do supermercado próximo à casa deles e viu vários pacotes de botões já abertos, com jogadores faltando. Inclusive o da seleção brasileira!


De posse de tão valiosa informação, Cacau não pensou nem meia vez. Chegou em casa, inventou uma desculpa para a mãe e voou para o super, enquanto Gutão já se incumbia de telefonar para os dois suspeitos, marcando o campeonato daquela tarde. Mal podiam esperar para ver a cara dos dois quando Cacau aparecesse com um Rivelino novo, com cara de desentendido, sem passar recibo do furto ocorrido na tarde anterior. No supermercado o coração de Cacau dobrara os batimentos. A primeira coisa que viu na sessão de brinquedos foi um pacote de botões da seleção brasileira já aberto, tal qual Gutão lhe afiançara. Melhor do que isso, o primeiro jogador visto no pacote foi um Rivelinão, sorrindo para ele e pedindo: “me leva, me leva”! Numa fração de segundo o botão já estava no bolso de sua camisa e Cacau voltou para casa feliz, sem nenhuma migalha de arrependimento. Os pacotes já haviam sido abertos e devidamente furtados. Não se sentia criminoso. No máximo tratava-se apenas da continuação de um delito iniciado por outrem. Se a polícia descobrisse o autor principal a ele seria creditado também o furto do Rivelino. Além disso tinha sido escandalosamente roubado na tarde anterior e aquilo que acabara de praticar era apenas uma mera e justa reposição.


O campeonato daquela tarde foi arrasadoramente fácil. Abatidos moralmente, Vandinho e Beto sofreram goleadas impiedosas. O Rivelino novo de Cacau fez até gol olímpico! Como se dizia na gíria da época: deitou e rolou! Os dois supostos larápios não acreditavam em seus olhos! Como Rivelino ressurgira? Era a concretização de seus piores pesadelos.


Cacau e Gutão trocaram olhares cúmplices e riram muito.



A noite, em casa, Cacau estava exultante, ainda comemorando as novas vitórias e estava treinando em seu quarto quando o pai chegou do trabalho. Desavisadamente disse ao pai que recuperara o seqüestrado. O pai quis saber como e ele orgulhosamente narrou os detalhes da aventura certo de que o pai admiraria a sua esperteza. O efeito foi dramaticamente oposto. Em acesso de fúria o pai puxou suas orelhas com fé, bradou códigos de honra da família, vociferou que nunca pegara nada que não lhe pertencia na vida e ordenou que o pobre Rivelino teria de ser devolvido ao pacote de origem na manhã seguinte, assim que o supermercado abrisse as portas.


Importante salientar que aqueles eram tempos em que os filhos sequer ousavam argumentar com os pais, quanto mais desobedecer uma ordem tão clara e definitiva. Fato é que às 8 e meia da manhã do dia seguinte Cacau estava na porta do supermercado, com o craque no bolso, esperando abrir as portas. Foi infinitamente mais difícil recolocar o botão no pacote do que retirá-lo. Primeiro porque sabia que nunca mais recuperaria o valioso artefato e que seu time permaneceria para sempre incompleto. Segundo porque só agora lhe ocorria a gravidade do ato. Só então temeu ser pego em flagrante delito. Como explicar que estava devolvendo o botão? Ninguém acreditaria. Rodeou o pacote aberto cinco, seis vezes e só recolocou o botão quando teve certeza absoluta de que nenhum olhar suspeito o espreitava. Saiu em desabalada carreira de volta a casa, chorando muito no caminho. Uma mistura de vergonha e sentimento de derrota.


O fato que importa é que a lição foi aprendida. Pelo resto de sua vida Cacau manteria guardado a sete chaves o time de botão incompleto como uma prova contundente do amor paterno. Ah, e apesar de convidado, nunca aceitou um emprego em Brasília. .

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Escolhendo a pior data.

Mário Quintana morreu em 05 de maio de 1994. Uma quinta-feira. Alguém imagina o que estava acontecendo no Brasil exatamente neste dia? Ayrton Senna havia se esborrachado no muro no dia 1º de maio, ou seja, no domingo anterior. Seu corpo chegou ao Brasil naquela semana e o sepultamento ocorreu apenas na sexta, dia 06.
Sendo assim, muito pouca gente percebeu ou se emocionou com o passamento do poeta que morreu quietinho, lá em Porto Alegre. Pouca gente no seu enterro. Lembro-me de uma pequena nota nos telejornais e só. O Brasil chorava a morte de outro filho.
Daí esse poeminha.



MÁRIO QUINTANA, O PIOR ESCOLHEDOR DE DATAS


Mário como eu sou Mário,
Que como eu não é de Andrade,
Mas que viajaste tantos versos
E foste poeta de verdade,
O que houve contigo, amigo,
Que resolveste singrar outros mares?
Decerto cansaste enfim
De teus saborosos quintanares.
Mas por que, após noventa anos
Escolheste partir, que pena,
Justamente na mesma semana
Da morte de Ayrton Senna?
Teu brilho foi chamuscado
Diante da nação em dor,
Mesmo para quem conheceu
Teu imenso e real valor
Na verdade não passaste,
Continua passarinho,
Só escolheste momento ingrato
Para abandonar teu ninho.
Teus versos continuarão brilhando
Enquanto brilhar a lua,
Mas veja se da próxima
Escolhe uma data só tua.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Solidão definitiva?

Ah, as manhãs ensolaradas de inverno...
Elas nos fazem mais felizes do que achar dinheiro no bolso de um casaco antigo.
Pelo menos para mim.
Daí é inevitável pensar no amor.
Aí vai mais um soneto cometido em nome dele. Ele é o culpado.



SOLIDÃO DEFINITIVA

A noite é longa e fria.
Não me é dado saber o porque,
Nem como, mas só penso no que
Tua ausência me causaria.
Penso em não estar contigo
Tanto quanto na solidão definitiva
Que improvável, todavia aflitiva,
Azeda a vida, destila o castigo.
Penso em você agora e talvez
Como se incerta a tua permanência,
Como se fosse a última vez.
Tento adequar meu paladar à ciência
De sorver a doçura que brota abundante
Do sorriso que traduz tua transparência.

sábado, 5 de junho de 2010

Adauto

Já que estamos no meio do feriadão e, teoricamente, as pessoas tem mais tempo para ler (pelo menos deveria ser assim), resolvi postar um conto beeeeem loooongo, baseado em fatos mais ou menos reais (qualquer semelhança é mera coincidência). Apresento um personagem novo, o Adauto, típíco paulistano da classe média quase alta. Sei que muitos torcem o nariz para um texto tão longo, pelo menos é o que dizem meus amigos que defendem a concisão do conto, mas, apesar de tudo isso, vou arriscar. Boa leitura.




UMA SEQUÊNCIA MAIS OU MENOS LÓGICA


Adauto chegou em casa tarde naquela quinta-feira chuvosa. Uma e meia da manhã. A sexta seria puxada na produtora, pensou. Mas não dá para recusar os convites para o chopp das quintas-feiras com os outros professores da FAAP. É muito divertido conversar com o Pedro Henrique, professor do curso de artes plásticas, com a Simone, com a Odete, ambas colegas suas, professoras no curso de comunicações, mais especificamente no curso de rádio e TV e com os demais agregados que sempre pegam carona e acabam aparecendo na pizzaria. A imediata sensação de solidão que sente quando entra em seu apartamento Adauto costuma remediar ouvindo os recados na secretária eletrônica, várias e várias vezes. Sempre sua mãe pedindo alguma coisa, seus irmãos, sobrinhos, e poucos amigos convidando para um jantarzinho no final de semana. Não, o vatapá do Fábio ele definitivamente não aguentava mais. Sua solidão só não poderia ser maior porque seu apartamento era pequeno e não permitia grandes espaços vazios à sua volta. Era uma solidão contida em limites estreitos, mas nem por isso deixava de machucar, algumas raras vezes. Então, naquele dia um recado o intrigou:

- “Alô, Adauto?, Ana Beatriz, lembra? Sou da sua turma na ECA..., Não vejo você desde 75, faz tempo, né? (silêncio constrangedor, alguns ruídos não identificados). Acho que você nem vai lembrar de mim mas tudo bem. Olha, eu gostaria de falar com você. Me liga. Meu telefone é 3813-7752. Beijão viu!...
-
Apesar de perceber que a voz na secretária estava trêmula e que a pessoa deveria estar profundamente constrangida em deixar aquele recado, Adauto fez as contas de cabeça, sabendo não ser o seu maior talento: “Estamos em 2007 e nos formamos em 75. Deve ser algum jantar atrasado, comemorativo dos 30 anos da formatura. Estou fora! Esses jantares são chatíssimos. Lembra do Chiquinho? E do Zé Libelú? Não, esse não, estou falando do Zé que saía com a professora de cinema lembra? Aquela que era casada e dava prá todo mundo?..... Isso é um porre.” De mais a mais não fazia a menor idéia de quem era a tal de Ana Beatriz. Desprezou o recado. Adauto tem agora 56 anos. É do tipo que acrescenta a expressão “Graças a Deus” após dizer que é solteiro. Desde os vinte e poucos anos mora completamente só, exceção feita a algumas namoradas esporádicas que iam dormir em seu apartamento uma noite e acabavam ficando cinco ou seis, para seu total desespero. Uma vez terminou um namoro de três anos porque a namorada deixou a calcinha pendurada no box do banheiro.

Seu apartamento é sóbrio, pesado, decorado com móveis escuros, madeira cor de tabaco. As poucas paredes livres dos livros, CDs, vídeos e DVDs são de cores frias. Ele é uma pessoa discretíssima, de aparência sóbria e não fosse pelos entregadores de pizza e de comida chinesa que eventualmente sobem ao seu apartamento os vizinhos jurariam que ele já estaria morto há uma semana, exalando um cheiro insuportável, caído no chão do banheiro, fio de sangue escorrendo da boca. Tem ogeriza de pipocar a pele das reuniões de condomínio. Nunca apareceu. Limita-se a pagar sem reclamar os acréscimos na taxa condominial, sejam por conta do dissídio dos porteiros ou da limpeza das pastilhas externas do prédio. Apesar de cantarolar esporadicamente uma canção do Vinícius, que em determinado trecho diz: “e aí a criançada toda chega e eu chego a achar Herodes natural”, ele até que gosta de crianças, principalmente das confinadas em suas respectivas casas. Hoje, sua alegria mesmo são seus sobrinhos, nascidos de dois irmãos mais novos. Mas apenas depois que eles atingiram idade suficiente para entender uma conversa razoavelmente inteligente. Ricardo tem 17, Lucas 15 e sua preferida, a afilhada Ana Carolina, 19. Todos são orgulhosos do tio que já trabalhou na produção dos documentários da Globo e do GNT, já ganhou prêmios e que hoje tem sua própria produtora, onde a sobrinha Carol estagia desde que entrou no curso onde o tio leciona, há um ano. Comparece só de corpo aos almoços dominicais em família. E é só. Quando não está na produtora Adauto está no cinema, assistindo a todos os filmes iranianos com legendas em russo, ou lendo em casa.


Mas nem sempre foi assim. Nos anos 70 Adauto era muito diferente. Barbas e cabelos longos, sem ver pente há meses. Idéias revolucionárias na cabeça. Jaqueta militar de veterano do Vietnã. Viagens de carona. Conhecer o Brasil sem um tostão no bolso. Discos do Jimmy Hendrix, Chico/Caetano, Dylan/Baez. Stones/Beatles. Livros, Marx/Macluhan. Filmes, Truffaut/Godard. Às vezes ele pensa como é estranho ter se trasformado num “tio sukita”, tendo um passado tão interessante, tão alternativo e conclui que, hoje, isso tudo não é mais underground. Época de amor livre. Maconha e ácido. Festas intermináveis. Fugas da polícia. Passeatas. Festas intermináveis. Sexo sem fronteiras. A boca de Glorinha. As pernas da Sandra. Os seios de Heleninha.... Ana Beatriz! Quem era Ana Beatriz???

Adauto chegou a ser preso em congressos clandestinos da UNE. Apanhou da polícia, passeou em chiqueirinho de camburão. Ele gosta de imaginar que contribuiu com o processo de abertura democrática no país e se orgulha disso. Mas no fundo sabe que delataria a cidade inteira mediante a simples visão de um pau-de-arara. Foi pensando nisso tudo e em como a tal de Ana Beatriz se encaixava nessas histórias que ele adormeceu naquela noite.

Dia pesado aquele seguinte. Mil decisões e contratos para analisar na produtora. Telefone tocando sem parar. Conversas intermináveis, problemas, penca de e-mails para responder. Por volta das três da tarde Adauto já queria estar em outro lugar. Em casa, talvez. Foi exatamente o que ele fez. Foi para casa. Mas só depois das 10 da noite.

O hábito apertou o botão de recados da secretária eletrônica e aquela voz doce ecoou na sala novamente:

- “Adauto, oi (ar simpático meio forçado), sou eu de novo, Ana Beatriz (risada forçada). Desculpe insistir viu?! Mas é que estou realmente precisando falar com você. Não é nada urgente não, mas acho que é importante. Você lembrou de mim....de quem eu sou? Será? (outra risadinha daquelas). Me liga tá? Passei meu telefone ontem para você. Estou ligando aí mas não te encontro nunca. Não tenho seus outros telefones. Desculpa se eu incomodei. Beijããão”.

Alguém morreu, pensou. Só podia ser isso. Mas quem pôrra?! Para saber só retornando a ligação para a misteriosa “Ana Beatriz”, cujo nome já lhe aguçava a imaginação de maneira quase que insuportável. Tá bom, pensou, na minha faixa etária infarto costuma ser fulminante e todos os antigos colegas estavam nessa mesma faixa etária. O Zé Libelú, talvez? Ele tomava todas, tomava ácido, fumava maconha o dia todo, era meio gordinho, será? O Luiz Augusto? Da última vez que se encontraram ele trabalhava num banco. Esse tipo de trabalho encurta a vida das pessoas, poderia ser ele...Meu Deus, o Chiquinho, será? Mas absolutamente nada na voz de Ana Beatriz indicava que o telefonema era para contar desgraça. Aquela doçura, aqueles risinhos nervosos, sei lá. Para saber só retornando. Mas não hoje. No fim de semana talvez, pensou depois da pizza requentada e da Bohemia um pouco quente, já adormecendo diante de uma sensual Lauren Bacall, preta e branca na tela da televisão.


Sábado de manhã tem feira, pastel e cervejinhas com os amigos de bairro, o mesmo bairro de tantos anos e tanta resistência, uma Vila Madalena chique e ao mesmo tempo deteriorada, que em nada se parece com aquela verdadeira cidadezinha do interior dos gloriosos anos de chumbo. Mas o pastel e a cerveja continuam os mesmos. Apenas os amigos mudaram e, ah!, a paisagem. Depois da feira, do samba e das cervejas Adauto desaba no sofá da sala. Alcança, sem levantar, o botão da secretária eletrônica que grita:

- “Barulho...barulho....vozes..........risos..........Adauto?, Sou eu de nooovo, Ana. Lembrei que você morava na Vila Madalena. Eu também moro! Incrível, né?! Se você ainda morar aqui e quiser nos encontrar...(ruídos/vozes) estamos almoçando no Galinheiro, sabe? Vem prá cá vai?! Estamos ansiosos. Ou então me liga depois. Olha, meu celular é 9234-9434. Beeeijo.”

Adauto pulou do sofá e olhou o relógio. Três e meia, será que ela ainda está lá? Galinheiro, duas quadras daqui, saiu ventando! Chegando ao Galinheiro passeou o olhar por todas as mesas lotadas, as pessoas na calçada esperando mesa, nada. Nenhum rosto familiar. Não vou sair perguntando o nome das pessoas, pensou. Deu meia volta e foi para casa. Mas aquelas palavras corroíam-lhe a alma de curiosidade. Quem era essa mulher, Meu Deus?

De repente o telefone, ríiiiing (ou alguma dessas campainhas modernas eletrônicas). Sacou rápido o fone: - “Alô? Do outro lado, “Oi, é a Ana”. “Ana Beatriz”???? quase gritou. “Não tio, Ana Carolina. Não conhece mais minha voz”? “Ah, é você”? “Nossa tio, que voz desanimada, sou eu sim. Quem é essa Ana Beatriz? Namorada nova hein tiozinho? Conta vai”! “Pára Aninha, nem brinca com isso. É uma antiga colega de faculdade que tem telefonado mas eu nunca estou em casa para atender”. “Liga você pra ela então. Ela não deixou o telefone”? “Deixou mas eu não estou afim de ligar. Fala, o que você quer”? “Ah tio, vai comigo numa festa hoje”? “Nem fodendo. Assunto número dois, fala...”. “Não, era só isso. A festa vai ser boa, na casa da Dani, lembra dela”? “Lembro, mas estou estourando de dor de cabeça, me poupa dessa tá?!” “Tá bom tio. Vou indo porque você está um saco”. “Tá bom, tá bom, beijo, beijo, tchau”. Desligou. Pôrra, que susto!

Mais uma das festas das amigas da sobrinha ele não agüentaria. Aquela cambada de “new hippies”, garotos cabeludos, menininhas de vestidão, meia colorida e chinelo franciscano, Não! Vinis de Led Zeppelin, frases feitas, cachaça e maconha a granel, Não! Ele sempre se sentia um total estranho nessas festas. Um hippie de verdade, de poucos cabelos aparados, impecavelmente barbeado, de camisa de algodão listrada, sapato e meia, calça de sarja. O máximo de descontração que conseguia era o “pull over de cashemere” jogado displiscentemente sobre os ombros. E a moçada perguntando como foram os anos 70, querendo saber segredos revolucionários, perguntando, perguntando, e aquelas vozes: “Minha tia era vizinha do Marighella”.... “Meu pai serviu exército com o Lamarca”....Saco! Ídolos de verdade reduzidos a vizinhos da tia da Dani! Saco!

Mas esses pensamentos carregados de um sarcasmo que chegava a lhe dar prazer não desviaram o foco do que realmente estava importando agora: o último recado de Ana Beatriz. Rodou o recado novamente. Ouviu com muita atenção e imediatamente algumas palavras o intrigaram. “Se quiser NOS encontrar”. “ESTAMOS ansiosos”. Porque o plural? Será que ela estava com o marido? Chegou a desejar que não. Será que alguém da antiga turma estava com ela? Bem mais provável, mas quem? A Heleninha talvez? A Sandra? Mas ele se recusava a reencontrar antigas namoradas. Preferia lembrar delas no frescor dos 20 e poucos anos a constatar como estavam em “escombros” na meia idade. Adorava a palavra “escombros”. Era como se referia ao atual aspecto de seus antigos objetos de desejo. Brigitte Bardot e Rachel Welch, por exemplo. Uma vez encontrou uma “ex” num Fran´s Café da vida e fingiu que não viu. Confortável e conveniente. A simples visão de uma “ex” no esplendor dos 50 e poucos destruiria anos e anos de devoção às suas memórias mais eróticas e fantasias sexuais mais criativas. Mas o fato é que, uma vez mais, uma singela voz sem rosto o incomodou como nunca.

Adauto deixou o sábado acabar depois de acabar com duas garrafas de um bom malbec argentino. Estou bebendo demais, pensou, antes de dormir no sofá até a claridade do domingo entrar veneziana adentro. Deve ter sonhado com uma Ana Beatriz familiar, com o rosto de uma ex-namorada qualquer e o corpo da Rachel Welch, em 1969, mas o excesso de álcool passeando por sua corrente sanguínea impediu que ele se lembrasse de qualquer coisa. Levantou como se tivesse passado a noite dançando tango, com um curioso e simétrico desenho de almofada de chenile na face esquerda e foi se arrumar para o almoço na casa de sua mãe. Afinal, era domingo!

Desde que o Sr. Rodolpho (assim, com pêagá), pai de Adauto, Afonso e Ambrósio, falecera em 2001, os almoços dominicais eram a única alegria de Dona Leocádia. Receber os filhos e os netos rendia assunto para a semana inteira com as amigas do prédio. Dona Leocádia, por razões que só as mães poderiam explicar, sempre se preocupou muito mais com Adauto do que com os filhos mais novos. Principalmente quando os primeiros sinais de que permaneceria solteiro começaram a aparecer. Desde cedo, portanto. Adauto, porém, limitava-se a explicar para Dona Leocádia que ainda não encontrara uma “boa moça” (palavra mágica para quem é mãe). Isso não a convencia. Sempre existia a sobrinha solteirona de uma amiga do prédio, ou uma prima de segundo grau vinda do interior, a filha de uma amiga da igreja, algumas, enfim, das “boas moças” que Dona Leocádia insistia em apresentar para Adauto. Em todas as vezes que isso ocorreu o desastre foi inevitável. Constrangimentos, situações absurdas, ausências inexplicadas, tudo aconteceu, a ponto de seu apelido em família se consolidar como “velho-do-rio”. Mas naquele domingo, Adauto sentia-se diferente. Uma inexplicável sensação de conforto, de amparo, de que fazia parte de um grupo, tomou conta dele, devagar.

Dona Leocádia foi a primeira a perceber: - “Você está diferente, filho. Não sei, está com um ar bom. Conte-me as novidades”. Adauto comparava a mãe a um detector de mentiras humano. Nada lhe escapava e era impossível, para ele, mentir sobre as situações mais corriqueiras. “Nada mãe, o de sempre, o de sempre”. “Então porque esse ar parado, de quem está longe daqui e esse meio sorrisinho no rosto”? “Ah, sei lá mãe. Andei recebendo uns telefonemas de uma antiga colega de faculdade e não consigo me lembrar dela”. “Vai ver sua mente não está lembrando mas seu coração sim”. Aquelas palavras bateram em Adauto com a violência de um tsunami. Daí a criançada toda chega, e ele ficou quieto o resto da tarde. Seus irmãos, cunhadas e sobrinhos perceberam. A sobrinha, Ana Carolina, tentou contar como foi a festa da noite anterior e que os amigos todos perguntaram dele, como se ele fosse um deles que havia inexplicavelmente faltado. Mas ele não deu atenção a uma palavra sequer. Foi para casa no início da noite, ávido por ouvir os recados na secretária eletrônica.

“Não há novos recados”, disse-lhe a voz metálica. Um soco no estômago no finalzinho do fim de semana. Agora só lhe faltava a trilha sonora: “olhe bem, preste atenção...nada na mão nessa também”. Isso era o fim! Chega de domingo, pensou Adauto. Resolveu ir dormir cedo para abreviar o fim de semana. Que venha a segunda-feira com seus doces problemas! E a segunda veio com o peso de um container em queda livre. Ele sequer teve tempo para refletir sobre os últimos acontecimentos. No finalzinho da tarde parou para um café perto de casa. Daí Ana Beatriz invadiu seus pensamentos novamente. Tentava caçar mentalmente fragmentos de antigos rostos, sons de vozes femininas, aromas, mas sua memória visual, auditiva e olfativa lhe faltavam. “O Cerqueira !!!”, pensou alto em pleno Fran´s Café.

Cerqueira era um velho e fiel amigo, daqueles poucos que restaram. Mesmo assim não se viam ou falavam há quase um ano. Analista dos bons, do time da psicanálise, não havia de lhe negar amparo num momento desse. Ligou do celular ato contínuo:

- “Cerqueira meu velho”,
- “Adauto? Pôrra, quanto tempo hein cara!”
- “Estou precisando te ver o quanto antes”
- “O que houve?”
- “Te explico quando chegar aí. Posso ir?”
- “Agora ? Eu estava saindo do consultório, mas te espero. Morreu alguém ou coisa parecida ?”
- “Não. Te explico quando chegar. Estou perto daí”
- “Ta bom, venha”
- “Té já”.

Chegou em cinco minutos ao consultório instalado no Sumarezinho suando, quase surtando de ansiedade:

-“Cara, você não sabe o que está me acontecendo”. Contou tudo em detalhes. O que mais lhe incomodava era não lembrar de Ana Beatriz, de não registrar nenhum detalhe sobre a dona daquela voz doce e ao mesmo tempo firme, carinhosa e serena. Cerqueira ouviu tudo em silêncio profissional e como Adauto não era seu paciente, resolveu falar o que pensava:

- “Adauto, você está ansioso demais. Você está projetando imagens afetivas e está sofrendo com a possibilidade de se frustrar. Isso é loucura Cara! Liga logo pra essa mulher e desfaz esse mistério.”
- Cerqueira, pôrra, para com esse psicanalistês! O que é isso?
- É a poltrona, disse Cerqueira.
- O que? Respondeu Adauto dando um salto olímpico que o jogou em pé, no meio da sala.
- É nessa poltrona que meus pacientes sentam. Força do hábito, sabe? Calma Adauto, senta aí e continua. Desculpe.
- “Não é tão simples Cerqueira. Não é tão simples !” Nem sei quem ela é. E se for uma mala, e se for alguém a quem prejudiquei, pisei na bola, sei lá. Naquela época eu fiquei com muitas mulheres e no dia seguinte nem me lembrava. Cruzava na USP e nem tchum ! A gente vivia maluco. Será que você não lembra?”
- “E se for isso, qual é o problema ? Você acha que ela está te procurando depois de 30 anos prá te cobrar alguma coisa ? Prá te esculhambar, te sacanear, sei lá ? Acho meio óbvio que a intenção é pacífica. Pode ser que você tenha sido uma paixãozinha dela na época. Agora ela se separou e está procurando possibilidades no passado, até aí tudo bem. Tem muita gente que faz isso !”
- “Você não tá entendendo Cara. Você sabe que eu não quero nada com ninguém, que adoro ser sozinho, que não me liguei a ninguém por opção.”
- “Ei, ei, ei, para aí ! Você não me contou que ela te pediu em casamento pela secretária eletrônica. Para com isso. Liga prá ela e marca um encontro. De preferência em lugar público pra evitar que ela te estupre. Deixa de ser cagão, pô. E fique certo de que isso não é opinião profissional. É de amigo. Pelo menos olhe umas fotos antigas para ver se ela aparece numa delas. Quem sabe você acaba lembrando ?!”
- “Ta, vou ver o que eu faço”.

Chegou em casa e ouviu todos os recados em sequência, várias e várias vezes. Algumas passagens continuavam deixando-o intrigado. O que será que ela tinha de importante, mas não urgente, para falar? Chegou a pegar o telefone para ligar mas olhou para o relógio e encontrou a desculpa que precisava. Quase meia-noite. Não é hora de ligar para a casa dos outros. Frase típica de Dona Leocádia. Amanhã ligo sem falta. Foi seu último pensamento conexo do dia.

Terça é o dia mais besta da semana, pensou no café da manhã. Não é mais segunda, o pior dia da semana mas que pelo menos se assume como um dia péssimo, ainda não é quarta, centro matemático da semana e para piorar ainda está longe do fim da semana. É um dia sem caráter. Sem cara. Até o trânsito fica melhor às terças, por algum desses motivos inexplicáveis. Talvez porque os todos os cidadãos motorizados odeiem tanto as terças que façam questão de ir de ônibus para o trabalho, numa espécie de protesto mudo, de desobediência cívica cuja intenção final é extirpar definitivamente a terça dos calendários do mundo. Esse pensamento era sinal de um atroz mau humor. E ele era famoso pelo mau humor. Como costumava dizer, mau humor é como colesterol: tem o bom e tem o ruim. O bom é acompanhado de um salutar e inevitável sarcasmo. Mas o problema maior é que a noite iria dar aula na FAAP e estava totalmente sem saco. Pior, estava sem saco de ir para a produtora. Costuma dizer que a vida é tudo aquilo que acontece enquanto ele NÃO está lá. Mesmo assim Adauto resolveu que iria cumprir todos os seus compromissos naquele dia. De repente, um instinto de auto-proteção, um lampejo de lucidez lhe ocorreu. Ele não podia ficar assim tão abalado por causa de dois ou três recados de uma pessoa que ele não sabia bem quem era. Isso, além de absurdo, era ridículo para um homem da sua idade e intelecto. Como bom virginiano, metódico e calculista, Adauto resolveu fazer o que mais gostava: Colocar pingos nos ís! Organizar a mente em caos. Deixar de andar nas nuvens e voltar para o planeta Terra. E assim os dias se sucederam. Nenhum recado mais foi deixado por Ana Beatriz. Sua ansiedade diminuía dia a dia. As coisas foram gradativamente voltando seu “status quo ante”. O Cerqueira talvez não fosse tão bom conselheiro quanto imaginara, pensou. Onde já se viu, telefonar para alguém desconhecido para tirar a limpo história nenhuma! Tocou a vidinha.

Assim, com seu cotidiano agitado porém monótono, Adauto sentia-se mais confortável. Os sobressaltos da vida o abalavam mais do que a qualquer pessoa que conhecia. Não sabia lidar com o inusitado. Amava rotinas. Que ninguém o convidasse para uma festa ou viagem repentina. Ele não aceitava, inventava desculpas e ainda ficava com raiva de quem o convidava. Onde já se viu. Compromisso com ele, só com antecedência. Mesmo assim ele necessitava saber quem estaria presente. Dependendo, desmarcava. Era um eremita por devoção. Um João Gilberto sem Grammy e sem violão. Só queria paz e sossego. Queria enterrar esse assunto. Ocorre que o Cerqueira tinha conexões com Dona Leocádia que Adauto desconhecia. Atendera Dona Leocádia após a morte de Seu Rodolpho pelo menos três vezes, a pedido de Adauto, e desde então criara laços de amizade com ela. Às vezes Dona Leocádia telefonava. Às vezes era Cerqueira quem tomava a iniciativa. Às vezes marcavam um chá no fim da tarde e conversavam longamente sobre Adauto, sobre a morte, sobre a vida,...ambos adoravam essas conversas. Dona Leocádia porque isso a aproximava mais do filho, ao seu ver, problemático e porque era uma oportunidade de conhecê-lo através de outros ângulos, outros olhares. Cerqueira porque sentia falta da mãe já falecida e projetava em Dona Leocádia todo o amor contido e toda a angústia de filho ausente e culpado. Fato é que a história de Ana Beatriz continuou a render assunto. Pelo menos entre os dois.

Nesses telefonemas e encontros furtivos, Dona Leocádia e Cerqueira discorriam longamente sobre a solidão de Adauto. Dona Leocádia preocupava-se muito. Mais dia menos dia ela se ausentaria. O que seria do filho? Cerqueira argumentava que ele já sabia se virar sozinho, que era independente, que um dia iria encontrar alguém mas aos olhos de uma mãe nada soa mais falso. Ela achava, porque precisava achar, que Adauto ainda lhe pertencia e dependia dela. Chegaram a cogitar um encontro casual forjado entre Adauto e Ana Beatriz. Essa mulher desconhecida poderia ser a solução. Aparentemente ela havia abalado o filho. Adauto jurava não se lembrar dela mas seu comportamento dizia o oposto. Mãe sabe ! Mas como forjar esse encontro ? Precisavam, antes de mais nada, tentar contato com Ana Beatriz. Uma conspiração estava em curso.


Pensaram inicialmente em contratar um detetive. Solução cara. O melhor seria entrar no apartamento de Adauto quando ele não estivesse e ouvir as mensagens na secretária eletrônica, tentando conseguir o telefone de Ana. Corriam o risco dele já as ter apagado. Era o mais provável. Mesmo assim, resolveram arriscar. Dona Leocádia sabia que a neta, Ana Carolina, tinha a chave do apartamento. Ela ia lá às vezes, na ausência de Adauto, assistir algum filme antigo, procurar um livro, fazer um strogonoff para o tio (ele adorava), ou simplesmente para levar uma pizza e um vinho e esperá-lo chegar para mais um longo papo cabeça. Mas teriam de incluí-la no “plano”. Ana Carolina idolatrava o tio, prezava demais a amizade sincera que ele lhe dedicava e herdara dele a integridade e a retidão. Dificilmente concordaria em compor o pelotão de fuzilamento, principalmente sabendo que esta verdadeira armadilha poderia desagradá-lo profundamente. Corriam o risco até dela revelar o plano a Adauto com antecedência. Seria um desastre completo, mas tinham que arriscar. Dona Leocádia marcou uma tarde com Cerqueira e chamou a neta para um chá. Aninha ouviu tudo sem interferir e, ao final de um longo silêncio, após um suspense insuportável, abriu um sorriso lindo e disse que era a melhor idéia que a avó tinha tido. Seu maior objetivo era ver o tio feliz, sem aquele ar grave e as olheiras de Boris Karloff, fruto, certamente, das noites de insônia. Se ele não dormisse, que não fosse por angústia. Não queria nunca mais ouvir o tio dizer, pausadamente: “O mundo Aninha, o mundo é uma merda !”. Podiam contar com ela!


No dia seguinte Aninha deu uma desculpa para o tio na Produtora e escapou no fim da manhã. Foi direto para o apartamento dele. Deu outra desculpa esfarrapada para o porteiro, como se fosse uma estranha no prédio, entrou como se fosse uma ladra e voltou a fita da secretária como se fosse uma espiã. Ouviu os recados, aliviada, um a um. O tio não apagara nenhum. Excelente sinal. Ligou para a avó do celular:


- Vó, os recados estão todos gravados! Sabe o que significa?
- Sim minha filha. Eu sabia que ele não ia apagar. Anotou o telefone dela?
- Lógico Vó. Ai Vó, a voz dela é de gente do bem, sabe?
- Que bom, que bom, vem logo pra cá e você aproveita para almoçar comigo. Vou esquentar aquela lasanha de domingo, que você adorou.
- To indo, beijo.


Na casa da avó, Aninha gastou pelo menos meia hora descrevendo a voz de Ana Beatriz. Era uma voz doce, confiável. Dona Leocádia sentiu uma quentura no coração, como que antevendo a vinda de tempos mais felizes para o filho. Ela já estava com idade suficiente para saber que não estaria perto por muito tempo mais. Era fundamental para ela que Adauto estivesse “encaminhado” e em paz. Isso significava paz para ela também. As duas devoraram em tempo record a lasanha requentada e resolveram telefonar para Ana Beatriz logo após, ambas com o coração aos saltos.

- Quem vai ligar Vó?
- Você né Aninha!
- Por que eu?
- Imagine que você é ela. O que você pensaria de um homem de cinqüenta e poucos anos que manda a mãe ligar para uma mulher?
- Sobrinha adolescente não é muito melhor, né?!
- E o Cerqueira? Perguntou Dona Leocádia.
- Não sei Vó. Amigo ligando também não é muito bom. Acho que sobrou pra mim mesmo, né?!
As duas ensaiaram um texto e Aninha teclou os números cuidadosamente, tão nervosa quanto se estivesse ligando para um garoto por quem estivesse apaixonada.


- Alô,
- Alô, pois não.
- Quem está falando?
- Rita. Quer falar com quem?
- A Ana Beatriz está?
- Está sim, quem vai falar?
- Diga que é Ana Carolina. Ela não me conhece mas eu preciso falar com ela.
- Ta bom, um segundinho....

Intervalo interminável..........

- Alô, pois não?
- Ana Beatriz?
- Sim.

O coração de Aninha quase sai pela goela afora.

- Meu nome é Ana Carolina e eu sou sobrinha do Adauto, sabe?
- Ah sim, eu andei querendo falar com ele mas não consegui. Aconteceu alguma coisa com ele?
- Não, não, ele nem sabe que eu estou ligando. Eu é que peguei seu telefone na secretária eletrônica dele e estou ligando. Desculpa viu?!
- Tudo bem, tudo bem. Você está nervosa?
- Um pouco.
- Notei pela sua voz.
- Pois é, eu e minha avó (a avó beliscou Aninha e fez um gesto desaprovador) queríamos falar com você, sei lá, é possível?
- Sim lógico. Pode falar.

Aninha levou uns 20 minutos explicando a vida do Tio, falando maravilhas dele, dizendo porque decidira ligar, etc, etc, de forma desconexa e confusa, mas Ana Beatriz entendeu imediatamente a situação.

- Aninha, nós somos xarás, né?!
- É, somos.
- Olha, eu conheci o seu tio há muitos anos. Nem sei se ele lembra de mim. Nós estudamos juntos na faculdade, sabe? Mas depois eu perdi o contato com todos, me casei, etc e agora estou precisando falar com ele, mas não é bem porque você está imaginando. Tenho um assunto muito pessoal para falar com ele, sabe?! Mas se ele não estiver querendo falar comigo, tudo bem. Nada vai mudar, entendeu?
- Entendi sim Ana (quase escapou um “tia” Ana). Então acho que o melhor a fazer é tentar convence-lo a ligar para você, né?!
- Não não, por favor não faça isso. Não quero incomodar nem parecer invasiva. Se ele não quiser falar comigo, repito, não tem nenhum problema. Só acho uma pena porque, pelo que você me contou, talvez a vida dele mudasse bastante depois dessa conversa. Eu liguei umas duas ou três vezes mas ele não estava em casa. Deixei recado e tudo mas ele não me retornou. Talvez ele não queira falar comigo, então tudo fica mais delicado, entendeu?
- Sim é lógico.
- Pois é. O melhor a fazer é nem contar a ele que você me ligou. Fica sendo um segredo nosso. Assim ninguém se constrange. Concorda?
- Lógico, lógico.
- Adorei falar com você viu xará?! Você é uma graça. É muito bonito o amor que você tem por seu tio. Ele deve ser uma pessoa realmente especial. Um beijo tá ?!.
- Outro “tia” (escapou).

Aninha estava com lágrimas nos olhos. A avó também. Tudo voltara à estaca zero! Só restava voltar para a produtora do tio, enfrentar a tarde de trabalho, e o tio, como se nada acontecera, com a cara lavada e passada. Foi o que ela fez, engolindo aquelas emoções confusas que acabara de sentir.

O problema é que ela estava agindo como se tivesse traído seu tio querido. Eles sempre jogaram muito limpo um com o outro. Ela estava quase contando tudo para ele. Ensaiou duas ou três vezes, entrou na sala do tio decidida a contar, mas na hora recuava e inventava uma desculpa qualquer de trabalho. Adauto percebeu que algo estava diferente com a sobrinha. Tanto que por volta das 5 e meia da tarde a chamou em sua sala e fechou a porta. Mau sinal, pensou ela. Providencial, por outro lado, pois Aninha não era de deixar as coisas pra lá. Quando queria dizer algo, acabava dizendo, de uma forma ou de outra. Então, antes que Adauto pudesse pronunciar a primeira sílaba, ela tomou a iniciativa das beligerâncias e atacou:

- Muito cômodo da sua parte, muito covarde viu?
- O que Aninha?
- Nunca pensei que você fosse assim tio, nunca pensei. Acho muito deselegante, desagradável...sei lá. Já vi gente tímida, gente egoísta, gente que não gosta de ter contato com gente, mas igual a você??? Isso é patológico tio, acho que você precisa se tratar, acho que você precisa...
- Aninha, para com isso! O que aconteceu? O que eu fiz?
- O problema não é o que você faz. É o que deixa de fazer!
- O que eu deixei de fazer então?
- As pessoas telefonam, querem contato com você e você não dá retorno. Se fecha nessa sua concha inesgotável e ninguém consegue penetrar.
- Inexpugnável.
- O que?
- A concha. Inexpugnável é melhor.
- É.
- Do que exatamente você está falando Aninha. Sei muito bem que seu discurso não prima pela coerência mas agora confesso que nem eu, que te conheço tão bem, consigo entender.
- Ana Beatriz.
- O QUE ???
- Sim, é isso que você ouviu. Eu sei que ela andou ligando, deixando recado e você não retornou. Você acha isso bonito?

Algo no tom de voz da sobrinha lembrou sua mãe.

- Aninha, você nem sabe quem é esta pessoa. Para dizer a verdade, nem eu sei! Você não acha que está exagerando? Fazer esse drama por causa de uma pessoa que nem sabemos quem é. Aliás, você andou escutando os meus recados? Isso sim é feio!
- Tio, você até não sabe quem é mas eu sei! Disse ela, ignorando a indignação de Adauto, aliás, legítima.
- Então quem é? Como você sabe?
- Eu liguei pra ela.
- COMO ???
- É. Liguei porque fiquei curiosa. Ela estudou com você na Faculdade e quer muito falar com você. Ela disse que é importante. Aliás, ela é uma pessoa muito legal e me fez jurar que eu não te falaria nada.
Adauto sentiu-se repentinamente acuado. Mas respirou fundo e continuou...
- Pois é Aninha. Você não acha isso muito pouco? Uma pessoa que sumiu de vista há tantos anos, telefonar agora? O que você acha que pode ser? Com certeza é para dizer que alguém morreu ou então ela está querendo reunir a turma, querendo fazer uma festinha deprimente com vários cinquentões carecas e gordos querendo cantar as cinquentonas botoxizadas e de cabelo tingido. Estou fora! Você me conhece. Sabe que eu odeio isso!
- E você acha que isso seria motivo para ela ligar tantas vezes? Você acha que se fosse apenas isso ela diria o que me disse?
- O que exatamente ela te disse?
- Disse que foi uma pena você não ter telefonado de volta porque o que ela tem a te dizer poderia transformar tua vida.

Aquela frase foi definitiva e o atingiu com uma força desproporcional. A partir daquele momento Adauto não ouviria nem uma palavra sequer, ainda que Aninha as disparasse, num discurso frenético e apaixonado. Imediatamente ele sentiu toda a inquietação tomar conta do seu cérebro. O coração disparou e ele começou a suar. Era preciso resolver isso de uma vez por todas. Adauto, num impulso, pediu para Aninha continuar o palavrório mais tarde, resolveu rapidamente o que tinha para resolver, assinou o que tinha para assinar e foi para casa.

Entrou no apartamento frio e foi direto para um armário. Fuçou, removeu caixas e mais caixas, papéis amarelados e finalmente encontrou uma pasta azul cheia de fotos antigas. Lembrou do conselho de Cerqueira. Aquela mulher tinha que ter uma cara! Só assim ele se sentiria seguro para ter algum contato com ela. Olhou as fotos uma a uma. Isso consumiu algum tempo. Até que achou uma foto dos tempos da USP. Uma festa qualquer num sítio. Era uma foto colorida mas nem tanto. Nos anos 70 as fotos tinham um colorido peculiar, meio puxado para sépia. Foi identificando uma a uma as doze pessoas que ali estavam estampadas. Parecia uma foto tirada num intervalo de show em Woodstock. Todos cabeludos e barbudos. Mulheres com cabelos longos e encaracolados. Figurino puramente underground (para a época). Olhou detidamente para a sua própria imagem, sentado no chão, e lembrou do quanto gostava daquela jaqueta jeans esfarrapada. Ao seu lado o Zé Libelú, amigão querido dos velhos tempos, baixinho e gordinho. Por onde andaria? Atrás dele, com as duas mãos em seus ombros, uma moça ruiva, com doces olhos azuis. Seu coração deu pulos. É ela!!!

Ele ficou alguns minutos admirando a fotografia e pouco a pouco algumas portas de sua memória foram se abrindo e possibilitando o acesso a outras salas fechadas há muitos anos, que davam em outras e outras localidades de sua mente e ele foi se lembrando de inúmeras situações há muito esquecidas. Todas elas relacionadas àquela ruivinha bonita da foto. Sua memória era visual. Nomes ele não lembrava nem os de sua família, mas a simples visão daquele rosto foi suficiente para ele se lembrar que tivera um caso com aquela moça, naquela época. Talvez até a história tenha começado no dia em que a foto fora tirada. Lembrou de odores, palavras, músicas que tocavam naquele tempo. Tudo foi voltando numa sequência mais ou menos lógica . Pelo menos para ele era lógica.

Lembrou, inclusive, que saiu com aquela moça algumas vezes, durante pelo menos um ou dois meses e que, de repente, ela desapareceu e ele soube que ela estava namorando sério com outro cara da turma. Mas ele não se lembrava com quem. Até ficou triste, na época. Ele estava “quase” apaixonado. Ela tinha, na verdade, dado um “fora” nele, da pior maneira que alguém pode dar um fora em outro alguém, ou seja, sumindo sem dar mais notícias. Porque estaria telefonando agora? “Eu sabia que era isso”, pensou em voz alta. Ou ela está querendo se redimir ou está querendo sair comigo, pensou. Mas porque depois de tantos anos? Ela deve estar desesperada mesmo! No fundo ele sabia que só descobriria a verdade se telefonasse para ela. Olhou o relógio. 19:35 horas. É cedo. Não conseguiu arrumar nenhuma desculpa para não telefonar. Ligou a secretária eletrônica. Ouviu os recados, Anotou o telefone dela, 3813-7752, e em seguida teclou o número, de forma automática, sem pensar. Ou ele faria isso num ímpeto ou não faria.
Ana Beatriz atendeu o telefone após dois toques:

- Alô.
- Ana Beatriz?
- Sim, quem é?
- Adauto.
Um silêncio constrangedor se seguiu.
- Alô, Ana?
- Desculpe Adauto. Você me pegou de surpresa, sei lá....nossa!
- Você não está podendo falar?
- Não é isso. Posso falar sim. Eu deixei vários recados pra você há duas ou três semanas...
- Eu sei, eu sei. Só não dei retorno antes porque estava bastante ocupado no trabalho, sem cabeça, sabe?
- Tá bom, mas acho que você conversou com sua sobrinha hoje, não é?
- É, conversei.
- Eu pedi para ela não te dizer nada...
- Tudo bem Ana. Quem está querendo conversar agora sou eu. Estou curioso para saber o que você tem a me dizer. Por favor, diga logo.
- Olha Adauto, é um assunto delicado, talvez seja melhor falar pessoalmente...
- Tudo bem, eu posso te ver agora.
- Agora???
- É. Você não pode?
- Acho que posso sim, você ainda mora na Vila Madalena, não é?
- Sim, moro.
- Então o que você acha de me encontrar no café da Livraria da Vila. Você conhece?
- Sim, é bem perto de casa.
- Meia hora?
- OK, estarei lá.
- Tchau....tchau....
- Espera Adauto! Você lembra de mim?
A pergunta ficou no ar. Adauto já havia desligado.


Adauto tomou o banho mais rápido da sua vida e voou para a Livraria. Sentou-se numa mesa ao lado de uma porta de vidro, de onde via claramente quem circulava entre as gôndolas. Detestava ser pego de surpresa.

Ele estava muito tenso, sorvendo um café com muito açúcar para poder acalmar, ensaiando alguns discursos, pensando cuidadosamente em tudo que iria falar, quando viu Ana vindo em sua direção, por entre livros infantis. Ela estava sorrindo, serenamente. Ele a reconheceu imediatamente. Ainda era uma mulher bonita. Ruiva ainda mas talvez com algum auxílio cosmético. Os olhos azuis estavam mais faiscantes do que há trinta e tantos anos. Ela contornou cuidadosamente a porta de vidro e chegou à sua mesa. Ele se levantou e a cumprimentou nervosamente, com um beijo tímido no rosto.

- Nossa, quanto tempo! Ele disse.
- Pois é Adauto. Tempo demais.
- Você está ótima. Sente-se.
- Por favor Adauto, não minta. Você é que está bem.
- É, tirando a calvície e a barriga não é?
- Isso é charme.
- Não, não é não. O fato é que a gente envelhece não é?
- É mas eu acho que a gente só vai melhorando com o tempo. Seria antinatural ter o rosto esticadinho, os seios duros, o cabelo com a cor original, na nossa idade, você não acha?
- É, disse Adauto sem pensar muito. Logo em seguida atacou com uma frase ensaiada:
- Tem visto alguém da nossa turma?
- Não. Não encontrei mais ninguém, com uma única exceção.
- Quem? Perguntou Adauto.
- O José Maurício, lembra?
- José Maurício??? Não me lembro.
- Vocês o chamavam de Zé Libelú, porque alguém inventou que ele era terrorista, o que ele nunca foi.
- O Zé?! Lógico que eu me lembro do Zé! Nós éramos parceirões. Eu gosto muito dele!
- Ele também gostava muito de você. Sempre se referia a você como um dos melhores amigos que ele teve. Ele achava que você tinha um grande caráter.
- Você teve bastante contato com ele então, Ana?
- Com certeza eu tive. Eu fui casada com ele por trinta anos.
O queixo de Adauto parecia despencar do rosto.
Aquele silêncio tão temido e evitado estava presente e incomodava mais e mais a cada segundo de permanência.
Finalmente, Ana tratou de exterminá-lo:
- O que foi Adauto? Parece que você ficou um pouco surpreso?!
- Na, na, não....É que eu não sabia disso. Eu encontrei o Zé algumas vezes nos últimos anos, por questões de trabalho. Ele trabalhou em várias emissoras de televisão, não é? Ele nunca me disse nada a seu respeito...
- Eu imagino porque Adauto. Mas é uma longa história.
Adauto pareceu não ouvir essa última frase e continuou falando automaticamente.
- Mas então.........mas então........
- Então o que?
- Diziam, naquela época, que você tinha sumido de vista porque estava namorando sério com alguém da turma. Então era com o Zé?!
- Sim, era ele mesmo, mas eu não sumi apenas por isso. Talvez o que você esteja querendo dizer nas entrelinhas é que eu sumi da SUA vida por causa disso, não é?
Adauto limitou-se a acenar com a cabeça, com a boca ainda escancaradamente aberta.
- Também não foi bem assim Adauto. É por isso que eu quero tanto falar com você. Tenho a obrigação de te contar e explicar algumas coisas, mesmo depois de tantos anos. Eu tenho quase certeza de que você vai ficar muito magoado comigo mas eu preciso falar e preciso de toda a sua atenção agora. Espero sinceramente que você esteja de coração aberto para ouvir o que eu tenho a te dizer.


Adauto acenou novamente com a cabeça, Ana sorveu um pequeno gole da água com gás de Adauto e começou a falar pausada e docemente, num esforço perceptível de tentar dissipar toda a tensão que pairava entre eles naquele longo instante. Absolutamente tudo o que Ana falou daquele momento em diante era totalmente inesperado, por mais que a imaginação de Adauto tivesse passeado tanto, fantasiado tanto sobre o que ela tinha a dizer.

Contou então a ele a história do breve relacionamento que tiveram, como se conta para um amigo, como se ele não a houvesse protagonizado. Ela tinha certeza de que ele não se lembrava dos detalhes e os detalhes faziam toda a diferença.

Para resumir, disse na lata, sem nenhum rodeio, que seria de se esperar nessas situações, que do breve casinho que tiveram Ana havia engravidado e dado à luz uma menina chamada Rita, hoje com 32 anos, por sua vez casada e mãe de um menino, João Vítor, de 5.

Adauto ficou lívido, branco como neve e Ana percebeu que ele estava prestes a ter um troço.

- Adauto, tudo bem com você?
Silêncio.
- Q...q...quer dizer que eu tenho uma filha e um neto? Disse com lágrimas nos olhos.
- Sim Adauto.
- Mas....mas....por que?

Adauto queria perguntar e não conseguiu, por que ela não havia dito antes, por que esperar 32 anos, por que só agora ? Ana entendeu as entrelinhas.

- Adauto, eu não te contei antes por vários motivos. Você provavelmente vai achar que não são motivos suficientes diante da importância do fato em si e vai me odiar. Aliás eu avisei que você iria me odiar, mas acontece que na época você me disse muitas vezes que nunca iria se casar, que tinha certeza de que seria solteiro o resto da vida, que achava que família e filhos só atrapalham a vida das pessoas porque desviam toda a atenção do que realmente é importante, etc, etc, lembra?
- Lembro.
- Nessa época eu era muito próxima do Zé. Ele era meu amigo querido. Quando eu disse a ele que estava grávida ele me deu todo o apoio, ficou próximo e ouviu todas as minhas lamúrias de mulher apaixonada, sem saber o que fazer da vida. Eu acabei me ligando muito a ele e o inevitável aconteceu. Namoramos e casamos e ele resolveu assumir a Rita como se fosse filha dele. Combinamos que você nunca saberia de nada. Eu nunca amei o Zé mas ele foi, ao mesmo tempo, o grande homem da minha vida, entende?
- Entendo. Disse Adauto com a cabeça abaixada, evitando contato visual.
- Ocorre que o Zé morreu há um ano e meio.

Nesse momento foi Ana quem engasgou e não conseguiu falar mais. Começou a chorar e percebeu que Adauto também chorava de soluçar. Segurou nas mãos dele e as afagou docemente. Quando conseguiu dominar o engasgo, continuou:

- O Zé era uma pessoa incrível sabe? Muitas vezes ele quis falar com você e eu não deixei. Então ele pelo menos me convenceu a contar a verdade para a Rita, desde criança. Ela sempre quis conhecer você e algumas vezes viu você de longe. Mas respeitou nossa decisão de não entrar em contato. Pelo menos até agora. Depois da morte do Zé, que aliás foi repentina, coração, sabe? Daí ela acabou me convencendo a falar com você. Ela está aqui, na porta da Livraria com o seu neto. Você quer conhece-los?

Adauto saiu do estado de choque em que estava imerso e seu rosto se iluminou. Sentiu algo que nunca havia sentido antes. Era como se seu coração estivesse se expandindo para além dos limites do peito. Não conseguia falar mais nada. Somente assentiu com a cabeça. Foram até a entrada da livraria e Adauto então viu uma moça linda, ruiva como a mãe, com olhos que ele conhecia bem do seu espelho. Ao lado, um garoto igualmente bonito. Ele não disse nada. Caminhou até a filha, ela lhe abriu os braços e ele a abraçou com força de muitos anos.


Adauto hoje encontra Rita e João Vitor praticamente todos os dias. Conversa longa e ternamente com a filha e brinca muito com o neto, que o adora. Já os levou para conhecer Dona Leocádia, Ana e toda a sua família, num domingo em que todos os lenços de papel do bairro seriam insuficientes para enxugar as lágrimas de todos.

Quanto a Adauto e Ana Beatriz, tornaram-se grandes amigos. Mas ambos, secretamente, não descartam retomar a paixão interrompida há tantos anos. Dona Leocádia continua rezando para isso todos os dias.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ÚLTIMO SONETO!

Não, não se animem antecipadamente. Esse não é o último soneto que postarei aqui. É apenas o nome dele!


ÚLTIMO SONETO

Gostaria de escrever um soneto forte,
Pesado, verdescuro, indecente,
Que chocasse os estômagos e mentes,
E fosse seco e frio como a morte.
Seu conteúdo sujo e sufocado
Seria como os desencontros da vida
As desilusões mais amplamente doloridas,
Num contexto de rio ressecado.
A frieza de seus versos causaria
Ou asco, dispnéia, hidrofobia,
Ou indiferença de nem fazer careta.
Acinzentado em sua única faceta
Seria ele meio, fim e com o qual
Me vingaria do mundo com a caneta.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Arquitetura do ar

Poesia é o exercício de criar estruturas a partir do abstrato?
Isso já foi suficientemente pensado e debatido, entretanto...



ARQUITETURA DO AR

As idéias nadavam na carga da caneta,
Proveta provisória em ebulição.
Derramei-as no papel impenetrado e alvo,
Até então virgem.
Para angariar alguma poesia
Lancei mão de apetrechos.
Trechos de antigas cartas em aramaico,
Um arco voltaico que volta e meia encrencava,
Uma trava para travar não sei o que,
Um bilboquê sem bola na ponta,
Uma conta de um supermercado falido,
Um latido contido num pequeno vidro,
Uma sidra bebida até a metade,
Um frade para orar por causas fúteis,
Um chute de três dedos bem no ângulo,
Um losango amarelo sem bandeira,
Coisas assim, bastante úteis.
Passei a adorar o halo do sol
Como os antigos egípcios.
Lutei jiu-jitsu com as forças ocultas.
Levei multas de policiais virtuais.
Consultei os anais da enciclopédia do futebol.
Constitui um rol de objetos irreais.
Antes que o nada me escapasse por entre os dedos
E longos enredos me impedissem o navegar,
Antes de deixar retornar o medo,
Antes mesmo de aprender a nadar,
Resolvi reaprender a arquitetura do ar.