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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

No apagar das últimas luzes de 2010...

posto hoje o último texto desse primeiro ano de blog, um poema escrito há vários anos, em forma da famosa lista de providências para o ano que vai chegar, como todos nós temos o hábito de fazer. Cumprir as promessas já é uma outra história...
Feliz Ano Novo!!!



LISTA DE PROVIDENCIAS



Necessito lubrificar velhas idéias,
Dar forma nova a conceitos mal urdidos.
Embaralhar lembranças inúteis bem no fundo
Do mundo dos nós mal resolvidos.
Aparelhar a polícia da insensatez
Com armas vazias e palavras cheias.
Calibrar o olhar furibundo.
Dormir mais cedo. Dormir sem meias.
Conquistar Marias, Carolinas e Jussaras.
Limar as aparas das profundezas da mente.
Beber mais água. Comer mais vida.
Voltar a escrever prosa urgentemente.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Após mais um Natal...

Vou postar hoje um texto meu que acabou de sair em duas partes no blog do amigo Alexandre Cantinho. Quem não ler lá, que leia aqui!




PONDO O PÉ NA PROFISSÃO.


Gatunamente usufruindo da liberdade que o Cantinho me proporcionou aqui, quero terminar o ano falando de um assunto que me é muito próximo e que diz respeito ao mote dessa coluna, qual seja, o prazer e o belo (não o cantor), sendo essas grandezas intimamente relacionadas aos bares e à noite de São Paulo. Talvez a coluna de hoje seja mais longa do que eu pretendia e já peço desculpas de antemão por isso. É que o assunto é vasto! Quero falar de música! Ou mais particularmente dos meus amigos músicos! Peço desculpas também pelo tom intimista e autobiográfico.
Fernando Brandt, letrista dos melhores, começa a música Bailes da Vida dizendo: “Foi nos bailes da vida, ou num bar em troca de pão que muita gente boa pôs o pé na profissão de tocar um instrumento e de cantar não importando se quem pagou quis ouvir”...é, foi assim! Eu me lembro muito bem.
Quanto à minha história, aprendi alguns acordes no violão aos oito anos. A partir daí me tornei auto-didata e um voraz consumidor da revista Violão e Guitarra (Vigú para os chegados). Aos quinze, ganhei um cavaquinho e um método. Saí tocando. Ainda aos tenros quinze anos pratiquei a minha primeira e tímida incursão na noite paulistana. Um amigo da escola me levou ao Bar do Amorim, uma biboca instalada numa sobreloja da Rua Augusta. Ao nosso lado um rapazola magrelo tocava violão como eu nunca havia escutado e cantava como um anjo. Era o Djavan. O meu “debut” foi o melhor que eu poderia imaginar!
Na Faculdade de Direito eu passei meses indo por aí, com o violão debaixo do braço, bebendo cachaça e organizando “violadas” no Centro Acadêmico. Até que, aos 20 anos de idade, dois amigos do bairro me convidaram a formar um grupo de samba! O nome? Grupo Pró-Alkool (assim com k mesmo) mais em referência às quantidades de álcool ingeridas pelos membros do que ao então emergente programa energético governamental. Durante cinco anos tocamos na noite, muitas vezes dormindo sobre os instrumentos, em razão do trabalho durante o dia e da faculdade. Fizemos uma pequena história, tivemos um vasto fã-clube feminino e tocamos em muitos bares, hoje extintos (não por culpa nossa). Andrade, Pote, Brasileirinho e tantos outros. Também dávamos expediente aos domingos a noite no “Botecão” (perto da Paulista), onde tinha macarrão ao sugo “de grátis” e onde eu conheci grandes sambistas do naipe de Odair do Cavaco, Cebolinha, Silvião do pandeiro e tantos outros.
Daí porque inicio esta homenagem aos meus queridos amigos (até hoje) companheiros de conjunto (na época ainda não se chamava “banda”). Além deste que vos escreve, ao cavaquinho, a troupe ainda contava com Gabriel na timba, Dé no pandeiro, Mauro no ganzá e no charme, Ronaldo no tamborim e nas relações públicas principalmente com as mulheres (infelizmente já falecido) e alguns outros bissextos. Desses, um carinho especial ao Maugéri Sobrinho, também já falecido. Um velhinho simpaticíssimo cujo apelido era “azulejo” (em razão da calva brilhante) e compositor da música “a taça do mundo é nossa”, além do hino do Santos Futebol Clube (agora quem dá bola é o Santos...). Esse simpático senhor nos acompanhou ao violão e ao bandolim brilhantemente. Saudades!
Outro violonista de 7 cordas sensacional que nos acompanhou na época foi o grande João Macacão, que muito nos ensinou e até hoje está na ativa (ainda é novo). Continua um ótimo amigo! Teve ainda um terceiro violonista, também já falecido, Seu Mário do 7 cordas, que havia tocado no regional do caçulinha na juventude e após sua aposentadoria nos procurou e ofereceu seus serviços tendo a séria intenção de terminar a vida fazendo o que mais gostava. Conseguiu e hoje temos orgulho de ter tocado com ele, uma das pessoas mais doces e educadas que conheci. Saudades!
O grande cavaquinista Seu Moreira, amigo de Paulinho da Viola e enfermeiro aposentado do HC, com quem muuuuuiiito aprendi. Saudades!
Essas pessoas todas não sabem disso mas forjaram em mim o mais profundo amor pelo samba, pelo choro e, principalmente, a paixão de tocar um instrumento num grupo.
A partir daí a história definitivamente se abriu num leque maravilhoso. Toquei com e conheci tanta gente boa e competente que às vezes fica até difícil lembrar de todos.
No saudoso Clube do Choro (e na “rua” do choro) conheci músicos maravilhosos. Infelizmente vários já se foram. O cantor Rubão, incrível voz negra que mandava o recado sem microfone. Gentil do Bandolim, também conhecido como Canhoto, Seu Tavinho no cavaco, Xixa do cavaco, Carioca no violão de seis, Manezinho da Flauta que dizia ser sobrinho do Pixinguinha (até hoje ninguém sabe se era mesmo), o maravilhoso flautista Carlos Poyares, e quanto aos felizmente vivos, o sensacional clarinetista Stanley, Zé Barbeiro, Cidão do 7 cordas, Miltinho, enfim, tanta gente...
Na Praça Benedito Calixto, um belo dia, surgiu um bar que ficava aberto até altas horas, o Vida e Arte, e onde todos os músicos da região iam fechar a noite após terminar o “expediente”. Desnecessário dizer que tudo acabava em samba até os primeiros raios do astro rei! (bonito isso hein?!).
Lá conheci e me tornei amigo (até hoje, para a minha sorte) do incrível compositor e violonista Antonio Mineiro, do Dr. Francisco Aguiar também conhecido como Chico Médico, cantor de vasto repertório de samba e meu médico até hoje, do talentoso violonista e cantor João Lúcio, meu amigo e parceiro (em várias músicas) e tanta gente mais...
No maravilhoso bar Vou Vivendo, legítimo herdeiro do Clube do Choro, fui vivendo noites incríveis. Assisti Hermeto Paschoal, Francis Hime, uma das últimas apresentações da maior cantora que já vi, Elizete Cardoso, o ótimo grupo vocal Canto a Canto e fiquei amigo da minha querida Jane do Bandolim, ou Jane da Bandola, como ela se auto-intitula.
No (talvez) melhor bar de música brasileira da história de São Paulo, Boca da Noite, também vi e vivi noites memoráveis. Lá conheci Filó Machado, Paulo César Pinheiro, Eduardo Gudim, Maria Marta, Elton, Julinho e tantos outros cabras maravilhosos...
Após tantas e incríveis aventuras caí de paraquedas (e nunca mais saí) no Bom Motivo Bar. Daí a lista é enorme. Vamos por partes como diria o esquartejador: a começar do dono do estabelecimento, Roberto Lapiccirella, que também dava expediente de músico e cantor dos melhores, Waltinho, sambista de primeira e até hoje nas paradas, Maurício Anacleto, sensacional condutor de multidões (principalmente as femininas), Roberto Boca, de acento deliciosamente nordestino, o percussionista Maquininha, que não tem esse apelido a toa, Luís do violão, o mais admirado por todos, o sensacional Escobar, já falecido e que só aparecia para tocar depois da novela das oito, até ganhar um videocassete do dono do bar para chegar no horário, Carmem Queiroz, maravilhosa cantora, a sensacional pandeirista Roberta Valente, hoje “nas paradas de sucesso” com todo o merecimento, Iran Clayton, o mais simpático, Josias Damasceno meu parceiro (num samba só, infelizmente), pianista, violonista e cantor de levantar poeira, Mônica Salmaso, na época uma garota insegura e meio gorduchinha, o incrível (também infelizmente falecido) Ney Mesquita, um dos melhores cantores que já ouvi e meu ótimo amigo, Thaís Duque Estrada, amiga querida até hoje, na época uma menina de 17 anos que já esbanjava toneladas de talento cantando sambas que não eram da sua época e demonstrando uma cultura musical incomum, Oswaldo Bosbah, também amigo e parceiro (em várias músicas), prestes a lançar o primeiro CD, também um incrível músico e cantor, Ibys Maceió, talentoso cantor, violonista e compositor, também parceiro em vários sambas e que infelizmente voltou para o torrão natal, o meu “quase” parceiro e grande cara Roberto Simões, o meu queridíssimo parceiro (em uma música só) e talentosíssimo Wagner Brandão, pessoa doce e sensível que papaidocéu chamou cedo demais e por fim, meu irmão (até hoje Graças a Deus) Claudio Duarthe, violonista maravilhoso que não ia com a minha cara a princípio e depois se tornou meu grande amigo e parceiro em várias composições. Através do Cláudio me tornei amigo ainda do Pratinha, flautista e bandolinista sensacional, do Pimpa, o melhor pandeirista do pedaço, do Chico Filho, saxofonista excelente, do Adriano Busko, o percussionista mais criativo que conheci e do sensacional Adílson Rodrigues, arranjador de corais e crooner da ótima banda “Cometa Gafi”, que uma vez defendeu um samba de breque meu e do Cláudio, chamado “Nickname Brad Pitt” no festival de Tatuí e ganhou o troféu de melhor intérprete. Quantas histórias para contar....
Dos famosos fiquei amigo, na época, da genial Miriam Batucada e do “maior de todos”, Zé Kéti, a ponto de freqüentar a casa de ambos muitas vezes.
Mas a saga ainda não terminou! Tempos depois passei a freqüentar um bar vizinho ao Bom Motivo chamado “O Feitiço de Áquila”, nome pomposo para um lugar simples. O dono, Samir El Shaer, hoje compositor e realizador de trilhas para a TV, agitou o pedaço contratando bons músicos e convidando alguns famosos para se apresentar no bar. Zé do Bré, Renato Brás, Lula Barbosa, Fátima Guedes, Filó Machado, Carlinhos Vergueiro e principalmente o cara que se tornou muito meu amigo, Walter Franco. Quantas e quantas horas discutimos a vida e os rumos da música brasileira?! Além disso ele me convidou para cantar com ele a música “Me Deixe Mudo”, num show que ele fez no SESC Ipiranga e um dia me apresentou uma grande pessoa chamada Zé Ramalho, no camarim de um show do próprio. Bebemos uísque até de manhã. Sensacional! Além disso ainda existia as cantoras e os músicos amadores da casa. Zaira, Edilene, Solange, Gêmeos, Cacá, e tantos outros...
Também freqüentava, concomitante e democraticamente o sugestivo Música & Cia., dos meus queridos amigos Lúcio (já no céu) e Miguel Bargas. Quantas vezes fui lá escutar a banda do sensacional Kitú, cantor, guitarrista e pessoa da melhor qualidade!
Nessa época me tornei amigo (também felizmente até hoje) de um cara daquele tipo que dá orgulho na gente só de mencionar o nome. Ítalo Perón. O que dizer de um violonista, arranjador, pensador da música, com o extenso e variado talento que ele tem?! Além disso, o filho dele, Fábio Perón, merece um capítulo a parte. Eu o conheci aos 5 anos de idade (!), tocando flauta doce. Naquele dia ele me disse com a inocência própria das crianças: “Mário, vamos montar um grupo de chorinho?”. O fato é que muitos anos depois, ele já encantando a todos no bandolim, realmente começamos a tocar juntos em várias ocasiões. Deliciosa história e ótimas pessoas.
Também por esses tempos me tornei ótimo amigo (até hoje) do grande Waltão Lacerda (no tamanho e no talento), excelente flautista e meu colega de turma na faculdade de direito, como logo descobrimos.
Ainda no Feitiço de Áquila conheci a maravilhosa Fabiana Cozza (a rima foi sem querer mas bem que poderia ser de propósito), que imediatamente se tornou uma grande amiga. Na época, uma menina de 20 e poucos anos, Fabi era uma força da natureza. Cantava (e ainda canta) com a propriedade e a segurança das cantoras com 40 anos de carreira. Um vozeirão de tremer as janelas e que encantou a todos desde o primeiro momento.
Tive o privilégio de acompanhá-la ao cavaco em muitos shows no Villagio, no circuito dos SESC´s e outros espaços da cidade até que recebemos a incumbência e começamos a organizar uma roda de samba no bar Ó do Borogodó às segundas-feiras. Conosco, vários músicos maravilhosos e hoje ótimos amigos. Ruy Weber, incomparável violonista e acima de tudo excelentíssima pessoa, João Poleto, flautista e saxofonista talentosíssimo, o gênio da turma, Ildo Silva, ótimo cara e ótimo cavaquinho e Cebolinha, batuqueiro de rara sensibilidade. Evidente que a roda pegou e pegou a ponto de parir o primeiro CD de Fabiana Cozza chamado “O Samba é Meu Dom”. Tive o privilégio de participar desse CD, acompanhando ao cavaco a faixa “A Morte de Chico Preto” (Geraldo Fiúme), sem contar com a glória de ter uma música minha gravada pela Fabi. É a faixa “Luzes” (em parceria com o já citado Josias Damasceno).
Através da Fabi conheci ainda outros ótimos músicos e amigos. Cito dois que são mais próximos: Douglinhas Alonso um garotão que destrói tudo na percussão e Marcos Paiva, baixista, arranjador e produtor musical de competência prá lá de comprovada.
Ao mesmíssimo tempo em que tudo isso acontecia, eu também participava do conjunto “É do Baú”, de samba de raiz, com meus caríssimos amigos Chico Médico (já citado), Carlão Amigão no violão de seis, Kika, destruindo tudo no pandeiro, Cebolinha na percussão e em algumas ocasiões com meu querido Paulinho Amaral (violão de seis) com quem formei ótima dupla e que anda sumido demais.
Isso sem contar com participações esporádicas porém muito aguardadas por mim no conjunto “Inimigos do Batente”, dos grandes amigos Fernando Szegeri e Paulinho Timor! Luxo total!
Logo depois disso tudo ou ao mesmo tempo, nem sei, tropecei e caí na porta do Bar do Cidão de onde também nunca mais saí.
Quantos músicos excelentes conheci por lá. Alexandre Arruda, trombonista fino, Paulinho Ramos no 7 cordas, Renato Vidal ao pandeiro, Alessandro Penezzi, grande violonista, Neto Amaral, cabra da peste e cantador dos melhores, Marcel do cavaco, isso sem contar que quase todos os anteriormente citados davam e continuam dando as caras no boteco. As canjas então, maravilhosas. Beth Carvalho, Dona Inah, Marcos Bailão, Hamilton de Holanda, Yamandú, Gabriel da gaita, enfim, um time da craques!
Mais recentemente freqüentei bastante o Tocador de Bolacha, dos meus queridíssimos Stella Guerreiro e Antonio Mineiro (aquele violonista que conheci no início do texto), cujos nomes até rimam. Lá, em vários anos de agradabilíssima coexistência, convivi com muitos dos músicos já citados. Que tempo bom!
Bem mais recentemente me tornei amigo do excelente violonista e compositor Floriano Villaça e do “bárbaro” compositor e cantor Rogério Santos, para meu orgulho, além das ótimas cantoras e professoras de música Regina Machado e Sônia Ruberti, o que prova que tem sempre lugar para chegar mais e mais gente boa! E muitos mais virão, certamente!
O fato é que até hoje estamos todos por aí, tocando e cantando pelas quebradas da vida. E pretendemos fazer isso muitos anos mais, afinal de contas, Cervantes dizia que “onde há música não pode haver coisa má” e Shakespeare colocou na boca de Cleópatra as seguintes palavras: “música, caprichoso alimento de nós que negociamos o amor”.
A todos estes fantásticos músicos, inclusive aos que cedo já partiram, aos famosos e aos nem tanto (porque esse país é assim, infelizmente), grandes amigos e grandes pessoas e a todos os outros que eventualmente omiti, mais pela senilidade galopante do que pela desimportância deselegante, o meu reverente “buana, buana”, o meu entusiasmado evoé e o meu “mais profundo e emocionado muito obrigado”.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Aos meus amigos

e fiéis seguidores do meu modesto blog, desejo um Natal maravilhoso, junto de quem vocês amam!

Beijos e abraços!

Mário.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Letra sem música...

que está esperando parceiro há anos!



FILME ERRADO



ERA ASSIM QUE SEMPRE ACONTECIA,
EU NUMA ANGÚSTIA, NUMA AGONIA
E VOCÊ CURTINDO PRAIA
OU NADANDO NUMA RAIA DE PISCINA,
EU A PONTO DE BEBER RUM COM ESTRICNINA
E VOCÊ NAS FESTAS DESCOLADAS.
EU, VOMITANDO NAS PRIVADAS
E VOCÊ NAMORANDO NAS ESQUINAS
EM ORGIAS BEDUÍNAS.

ERA ASSIM QUE SEMPRE AMANHECIA,
EU NO HOSPITAL, COM PLEURISIA
E VOCÊ CURTINDO A VIDA
OU TENDO RECAÍDAS COM EX-NAMORADOS.
EU FAZENDO O NÚMERO DO ENGANADO
E VOCÊ DISFARÇANDO AS GARGALHADAS.
EU DORMINDO NAS ESCADAS
E VOCÊ NAS CAMAS LUXUOSAS
NUM MAR DE ROSAS.

ERA ASSIM QUE SEMPRE TERMINAVA.
VOCÊ SEMPRE RIA, EU CHORAVA,
VOCÊ RIA MAIS AINDA.
VOCÊ ERA UMA RAINHA LINDA
E EU UM POBRE REI SEM CETRO.
VOCÊ VIVIA NUM MUSICAL DA METRO
E EU NUM TRISTE DRAMA MEXICANO.
PREJUDICADO, ME SENTINDO SUB-HUMANO
NO FILME ERRADO.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Voltaram!!!

Os colóquios!



COLÓQUIOS INSENSATOS 7


- Pois é Marcão, estou te ligando por causa de um assunto muito chato viu?!
- Fala Cirilo, pô, você está me assustando cara...fala logo...o que foi?
- Acho melhor falar pessoalmente.
- Não, agora desembucha, fala!
- Tá, sou teu amigo e vou falar curto e grosso...a Aninha tá te traindo.
- O QUÊ???
- É isso aí, eu vi com meus próprios olhos.
- Pôrra meu, não me fala isso....assim você me arrasa...o que você viu?
- Ah, vou te contar os detalhes porque sou teu amigo mas eu já liguei pra ela e dei um espôrro.
- Como assim? Ligou pra ela antes de me contar?
- É, não agüentei, muita cachorrada da parte dela, sou teu amigo né?! Já fui falando um montão, que ela é uma vaca e isso e aquilo...e prá você não ficar por baixo já disse a ela da sua secretária lá que você catava, das meninas naquela noite no bar....
- Você pirou Cirilo??? Como é que você conta isso pra ela????
- Ah, não agüentei cara, ela riu na minha cara quando eu falei o que eu vi. Aí eu já fui falando tudo e ela quieta. E bati o telefone na fuça dela! Sou teu amigo pôrra!!!
- Mas o que você viu meu?
- Vi ela ontem a noite dando uns amassos num cara de cabelo raspado, naquele bar que só toca pagode....
- ERA EU PÔRRA!!! , eu raspei careca!!!!
- Puta merda Marcão, foi mal, mas também, careca, num bar de pagode???!!!..........pô, puta decepção...........tuiiiiimmmm.....

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Este soneto...

um dia recebeu música do meu parceiro Oswaldo Bosbah.




FARSA


Se a história se repete como farsa
E o que lhe sucede é pungente,
Se a emoção é rara e esparsa
E o que lhe excede é incoerente,
Se o medo é o nosso acessório
E o vazio que cria é cúbico,
Se o desencontro é nosso território
E o esporádico encontro é púbico,
Meu desgaste é pela demora
Onde amanheço cedo e prudente
Aguardando conhecer sua flora.
A noite é elemento emoliente
Não por anteceder a vermelha aurora
Mas por me tornar de cético, crente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mais um poeminha.

ESFERA

A expectativa do beijo é melhor do que o beijo.
O porvir é quase nunca enfadonho.
Esperar é arte e ofício.
Ver é real, antever é sonho.

A promessa de sexo é melhor do que o sexo.
O que é conexo apura os sentidos da espera.
A mera menção faz o sonho eclodir.
Viver é ângulo, prever é esfera.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Se eu escolhesse....

Apenas um dos sonetos que escrevi como o meu preferido, seria este:



NOITE



Na extensão vasta de uma cama fria
Não há esporte mais digno dos heróis
E mais pleno de amor e de alegria
Do que, em parceria, esquentar lençóis.
E os lençóis esquentam no compasso
No qual esquentam corações e corpos,
Na fricção do amor, no calor do abraço
Findos os quais quedamos quase mortos.
O quarto inteiro parece não existir,
Nosso planeta é agora retangular
E é preciso, antes de tudo, sucumbir,
Porque você me subsidia no acordar,
Porque você me acaricia antes de dormir,
Porque você me faz sonhar.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Esse é outro....

daqueles textos cuja paternidade eu não assumo!



NEM TUDO



Nem tudo que reluz é ouro.
Nem tudo que introduz é touro.
Nem tudo que seduz é loura.
Nem tudo que conduz é agouro.
Nem tudo que reduz é tesoura.
Nem tudo que transluz é estouro.
Nem tudo que se produz é couro.
Nem tudo que se reproduz é besouro.
Nem tudo que deduz é calouro.
Nem tudo que induz é vindouro.
Nem tudo que Jesus é manjedoura.
Nem tudo que contraluz é mouro.
Nem tudo que avestruz é comedouro e
Nem tudo que chafariz é bebedouro.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Quem nunca...

Se sentiu inadequado? Sobrando? Quem nunca se sentiu um estorvo? por um motivo ou por outro? Não me lembro o que aconteceu e que me motivou a escrever esse soneto, mas certamente não foi algo agradável.





ELEMENTO ESTRANHO



Nunca fui cão em fundo de quintal,
Nem gato singrando muros.
Nunca encontrei meu habitat natural.
Sempre me vi em indescritíveis apuros.
O mundo para mim é uma selva
Dentro de outra selva indecifrável
E os animais que dormitam em sua relva
São de natureza nada afável.
A vã tentativa de um viver fecundo
Esvai-se na liquidez de um banho
E dorme no leito de um lago fundo.
Escreverão na lápide de estanho
No fim do dia em que eu deixar o mundo:
“Aqui jaz um elemento estranho”.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Temos sonetinhos de amor?

Sim, sim, temos mais!





DOIS ELEMENTOS


Às águas claras deu brilho
Um raio de sol empoeirado
Riscando o ar com seu trilho
Compacto, amarelo, determinado.
Pudemos ver toda a aparência
Da água, como se inexistente
E em cada molécula de transparência
O feixe de energia sincera e quente.
Com dois elementos inventamos um mundo
De vida intensa porém fugaz,
Imune ao frio e desprovido de mágoa.
E ali em nosso mar, bem lá no fundo,
Não conseguiremos distinguir jamais
Aquilo que é luz daquilo que é água.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

EIA, SUS!!!

3.000 ACESSOS!!!
OBRIGADO A QUEM PRESTIGIA!!!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Povo do meu blog....

Retornamos hoje com mais um colóquios!




COLÓQUIOS INSENSATOS 6



- Tira esse parafuso.
- Já tirei esse e não adiantou nada, eu acho que é melhor desatarraxar aquela engrenagem ali e retirar a bobina.
- Qual engrenagem, essa?
- Não, aquela ali atrás, à direita do rotor.
- Se você afrouxar essa engrenagem vai acabar engripando essa estrutura toda aqui que depende dela para girar.
- Lógico que não, cê ta maluco?! Essa estrutura só está aí para dar suporte para aquela bobina, que alimenta o rotor.
- Iiih, não tem nada a ver.
- Lógico que tem! Olha o fusível! Olha o fusível aí....
- Que fusível o que rapaz, isso é um transistor!
- Não senhor, transistor é esse aqui ó...preso nessa arruela...
- Tá, então não vou dar mais palpite, mas que vai dar merda, vai!
- A casa agradece.
- O que?!
- Você parar de dar palpite...
- Nããão, não tira esse parafuso não! Você vai soltar os arrebites todos!
- Ué, você não tinha parado?!
- Tá bom, tá bom...última pergunta....o que é esse troço aí?
- Não tenho a menor idéia.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Os caçadores do poema perdido...

Encontraram mais um, bem antigo:



ESCREVER VERSOS COM SONO


Escrever versos com sono é pensar em estéreo
E segurar a caneta em mono.
Emitimos ondas alfa todavia
As quais são mais propícias à porfia.
Escrever versos com sono é deixar de ser todo ética,
É deixar de ser da alma dono.
A pureza poética sofre perdas, na verdade,
Mas o coração esquece as dores do abandono.
Escrever versos com sono é falar sobre a primavera
Em pleno outono.
Acabamos por confundir, entretanto, o nome da mulher amada,
Ainda que seja Maria.
Escrever versos com sono é disputar com sete atletas
E chegar em nono.
É não esquecer, todavia, de assoviar
A mesma velha melodia.
Escrever versos com sono é desprezar qualquer desabono.
É não ser escravo da caligrafia,
É sonhar em plena luz do dia,
É ser monarca sem trono.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Para que não digam,,,

que nunca escrevi um soneto decente sobre o amor...



BEM DA VIDA

O bem da vida é astuto.
Quanto mais o ouço, o rejeito.
Quanto mais destruído e refeito
Maior a sanha com que o refuto.
Surge assim, do nada incerto,
Entre os desvãos das almas distraídas,
Dissimulado, corroendo em investidas
O peito vulnerável e entreaberto.
Ele acelera e surge rápido como um trem
E toma de assalto o meu dia
E o outro, o outro e o mês que vem.
Sei o que me espera e se sofria
Antes, quando esperava por alguém,
Aguardo feliz tudo o que temia.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Olhem o que eu encontrei....

perdido nas gavetas escondidas do meu computador: um poeminha despretensioso, escrito há mais de 15 anos. Apenas para quebrar um pouco a sequência dos "colóquios insensatos", os quais retornarão ao seu tempo.



ENTRE PARÊNTESIS


Vez ou outra surge um obstáculo,
(Não bastassem os específicos do vernáculo)
Que desaba sobre a mente do poeta.
Um balde de água fria que o afeta
(A ponto de abdicar de sua caneta)
Por semanas, numa espécie de dieta.

Uma namorada que abomine a poesia
(Por charme, ignorância ou teimosia)
Basta para manter desativado
(Desde que se esteja apaixonado)
O veio lírico, antes vívido e brilhante,
Que agora dorme tímido e calado.

Pois todo artista necessita do aplauso
(Há quem não o queira por acaso?)
E bem melhor do que meramente aplaudido
(Festejado, admirado, consumido)
É sê-lo por alguém que, especialmente,
Se deseja num gostar bem desabrido.

Mas para o bem ou mal da arte,
(Há sempre alguém que chega e outro alguém que parte)
O gostar do poeta é tão pulsante
(Tão intenso e deslumbrante)
Que logo apaga sem deixar ferida
E, estando o poeta na vida,
Retorna a poesia triunfante.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

De onde veio estes...

Tem muito mais!




COLÓQUIOS INSENSATOS 5


- Ai amiga, então tipo me conta tudo!
- Ah aí eu sentei assim tipo meio pertinho dele né?! Ele me olhou assim tipo canto de olho.
- Mas ele tipo falou alguma coisa?
- Não, tipo assim logo de cara não, mas eu percebi que ele estava tipo olhando assim bastante.
- E era tipo gato?
- Aaaah, tipo bem gatinho. Daí ele chegou perto e já foi tipo dizendo que queria me conhecer.
- Tipo, tipo?
- Ah, tipo meio tímido no início mas vai tipo se soltando sabe?!
- E depois, tipo rolou alguma coisa?
- Não, não mas ele tipo quis meu telefone e disse que vai ligar tipo quinta ou sexta pra gente tipo marcar algum coisa.
- Aaai que bom amiga! Eu tô assim tipo bem feliz por você viu?! Conta mais.
- Sei lá, o cara é um tipo.
- Tipo o que?
- Assim, tipo de engraçado sabe?!
- Ah sei, tipo tipinho?
- É, tipinho, mas ao mesmo tempo é tipo tipão!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Êêêita....

Mais um colóquios!




COLÓQUIOS INSENSATOS 4


- Tá, bola seis na caçapa do canto.......errei merda!
- Pô Ferreirinha, hoje você tá jogando mal hein, já perdeu a maior grana!
- A grana é minha e você não tem nada a ver com isso. Bola sete no meio.....errei de novo cacete!
- Ferreirinha, essa você já perdeu, desiste e vamos parar por hoje.
- Parar a puta que o pariu, vamos jogar outra.
- Não Ferreirinha. A gente somos amigos e não queremos te limpar pôrra, você já perdeu mais de 500 paus e a gente sabemos que você não tem essa grana....
- É não tenho grana mesmo...então tô apostando o meu chevette 73 e minha mulher!
- Pôrra Ferreirinha!!!!
- É isso aí! Meu chevetão tá caído mas a patroa vai junto!!!.....o que é? Porque vocês tão fazendo essa cara?
- Não é Ferreirinha....sabe?....na boa...vamos jogar então, tudo bem, mas só o chevette já tá bão.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Lá vamos nós...

Com mais um texto da série...




COLÓQUIOS INSENSATOS 3


- PÁ, um, dois, três, quatro.......foi.
- PÁ, um, dois, três, quatro, cinco, seis...foi.
- PÁ, um, dois, três, quatro, cinco...foi.
- Que é que cê tá fazendo ô Zé Mané?
- O que o Tonhão mandou ué!
- Mas tá contando o que maluco?
- É o seguinte: eu tô atirando na direção do coração e fico contando quantos segundos o cara demora para apagar. O record é 11 segundos daquele moreninho ali ó...
- Cê pirou de vez? O Tonhão mandou atirar na cabeça! Qué morrê maluco?
- Na cabeça não pôrra! Esses caras todos tem filhos. Amanhã é dia dos pais pô. Já imaginou a filharada vendo o pai no caixão com um puta buracão na testa?
- Tá, cê que sabe...depois se entende lá com o chefe então.
- Ah, não enche o saco e deixa eu fazer meu trabalho que eu tô atrasado. Puta cara insensível meu!
- PÁ, um, dois.....

sábado, 30 de outubro de 2010

Un´altro giorno...

E aqui vamos com mais um micro-conto:




COLÓQUIOS INSENSATOS 2


- Mas o que era essa coisa verde?
- Sei lá Selminha, acho que era o braço dele.
- Braço? Mas você não disse que era um troço meio pontudo e fininho?
- Não sei, não sei, eu vi meio de relance e tava escuro.Você sabe que aquele bar é escuro, não sabe?!
- Sei, mas o que ele te disse?
- Nessa hora nada, ele disse depois que passou o troço fininho em volta de mim e meio que me abraçou.
- Então, mas e depois, o que ele disse?
- Ah, ele disse que me achava linda e que o disco voador dele estava ali perto. Queria casar e me levar para o planeta dele.
- E você?
- Não fui né Selminha, eu não estou aqui???

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dia de inauguração...

Hoje aqui no blog! Há alguns dias comecei a escrever uma nova série de micro-contos baseada apenas em diálogos. Já fluíram vários textos que vou postar paulatinamente.
Eis o inaugural:



COLÓQUIOS INSENSATOS 1


- Fala Alfredão, quanto tempo cara!
- E aí Zé!
- Como vai a vida rapaz?
- Sabe como é, remando contra a corrente...
- Tá mas e aí? Como vai no trabalho?
- É, matando um leão por dia...
- Sei, e a família?
- Ah, lá é assim, casa de ferreiro, espeto de pau.
- Tá, mas porque?
- Você sabe né?! Cada cabeça uma sentença.
- Sei, mas conta mais, o que você anda fazendo de bom?
- Tô devagar, seguro morreu de velho né?!
- E você tem visto alguém da turma?
- Não, mas a pressa é inimiga da perfeição...
- Tá bom, mas vou te ligar para a gente se ver de vez em quando!
- Que bom, quem espera sempre alcança né?!
- Pôrra Alfredo, você não consegue conversar como um ser humano normal?
- Ah Zé, de perto ninguém é normal né?!
- Não Alfredo, estou dizendo assim...você não consegue falar sem usar um lugar comum, um provérbio pô?!
- Ah, até consigo mas falar é fácil, fazer é que é difícil!
- Alfredo, puta papo cansativo esse cara! Você está me irritando muito!
- Calma Zé, quando um não quer dois não brigam!
- Tá bom, então, quem com ferro fere com ferro será ferido. POW!

domingo, 24 de outubro de 2010

Continuando a agradável tarefa...

De postar meus hai-cais, aí vão mais dois:


Vida que vai e vem.
Preceito que não tem jeito
Enquanto se a tem.


Pretendo te amar
Enquanto a amo tanto.
O resto é apesar.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Hoje vou falar de um assunto bacana!

O Haicai. São apenas três versos que privilegiam a objetividade e a concisão. A forma poética de origem japonesa (haiku), no Brasil foi popularizada pelo "Príncipe dos Poetas, Guilherme de Almeida, com sua própria interpretação da rígida estrutura de métrica, rimas e título. No esquema mais tradicional, o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo verso possui uma rima interna (A 2ª sílaba rima com a 7ª sílaba). O meus não são assim tão rígidos...aí vão os primeiros dois:




A árvore cresce
Lenta, porém ciumenta
Do amor que amanhece.


Vôo de gaivota
Passando sobre a casa
Do velho agiota.

sábado, 16 de outubro de 2010

Não dá para disfarçar...

o quanto sou fascinado por estruturas consagradas de composição poética ou musical.
Escrevi muitos sonetos, compus sambas de breque e, mais recentemente, descobri o Cordel. Já postei um texto em forma de Cordel aqui no blog e hoje, depois de passar dois meses escrevendo-o, posto o segundo. Espero que gostem!




O DIA EM QUE O MESTRE JACKSON DO PANDEIRO ENCONTROU MICHAEL JACKSON NO CÉU E DESCEU PRÁ ACABAR COM A BANDALHEIRA NA MÚSICA BRASILEIRA



Mestre Jackson e seu pandeiro
Foi pro céu dos cantadores
E animava o céu inteiro,
Desde o Chefe aos assessores,
Com seu cantar ligeiro
E sua verve sem pudores.

Mas um dia lá chegou
Outro Jackson bem mais novo
E como Maikel se apresentou,
Já fazendo amizade com o povo,
Que logo dele se apiedou
Pois era branco como um ovo.

Mestre Jackson olhou desconfiado
Pra figura do estranho menino.
Parecia um boneco engessado
E no meio um nariz muito fino.
Cabelo bem preto, alisado
E fama de bom bailarino.

E foi falando o rapaz
E o Mestre fazendo careta.
O cabra andava pra trás.
Parecia bem o capeta.
Diz que teve cartaz
E que era filho de mãe preta.

Nasceu de pele escura
E ficou branco o raparigo.
E a razão de tanta brancura
Começou por seu umbigo.
Uma doença sem cura
Um mal chamado vitiligo.

E quanto mais falava bonito
Mais o Mestre ficava calado.
Ficou o dito por não dito
E todo mundo desconfiado.
Ou era um cabra esquisito
Ou era hôme-viado.

E o fato estranho que havia
Que nenhuma explicação tinha
E que o pobre mal escondia
É que quase perdia a linha,
Todo mundo sabia,
Quando via uma criancinha.

Tirante isso era macho
E, dizem, muito bom moço.
No céu sossegou o facho,
Escapou por pouco do fosso.
Mandou passear o diacho
Batendo o pé e falando grosso.

Chegou-se ao Mestre o piá
E foi conversando fiado.
Disse: - “Pois bem meu xará”
Com sotaque todo errado:
- “Lá na tua terra natá
Sou eu o rei do babado”.

- “O povo todo me imita
E sou amado por toda a gente.
Na TV tô bonito na fita
Nem podia ser diferente.
Pois cada CD que apita
Vendo mais que pãozinho quente”.

Mestre Jackson sentiu cheiro
De lorota naquele fulano.
O seu povo forrozeiro,
Povo de lascá o cano,
Que sempre falou brasileiro,
Deu pra falá americano?

O moço tava enganado.
Precisava mudar o enfoque.
Como é que um povo danado
Do Chuí ao Oiapoque,
Que sempre dançou o xaxado,
Ia gostar de dançar roque?

Mas o Mestre preocupado
Era muito precavido.
Contou o palavreado
Pros amigo mais querido.
Luiz Gonzaga ficou abismado.
Noel Rosa de queixo caído.

Ari Barroso não acreditou.
Tom Jobim ficou fanhoso.
A moça Elis quase pulou
Na garganta do mentiroso.
Pixinguinha logo falou:
- “Isso é coisa do tinhoso”.

Vinícius nem deu bola,
Só de olho nas anjinhas.
O elegante Cartola
Esbravejou nas entrelinhas.
E a fofoca tá que rola
Nesse céu de figurinhas.

Velho Lua foi quem disse
No seu tom de presidente:
- “Deve ser até sandice
Desse moço diferente.
Eu só acreditava se visse
Isso tudo pessoalmente”.

Mestre Jackson ouvindo isso
Declarou solenemente:
- “Pois assumo o compromisso
Da tarefa mais do que urgente.
Desço pra ver o feitiço
Que abate a nossa gente”.

Dito isso não se ouviu mais um piu.
O Mestre logo pegou sua tralha.
Sapato, mochila, chapéu e cantil.
Gravata, bornal, pandeiro e navalha.
Foi-se embora pro Brasil
Pra dá jeito nessa bandalha.

Foi voando sem cegonha
Que isso é luxo prá quem nasce.
Foi chegando sem vergonha
De encarar qualquer impasse.
E o que viu foi coisa medonha.
Foi salada sem alface.

A TV era uma avacalhação.
Música ruim vinha a galope.
Não se ouvia um samba-canção.
Só sertanejo, pagode e hip-hop.
E era tudo ajambração
Prá conseguir mais Ibope.

O rádio não era diferente.
O Mestre quase desanima.
Pois a música daquela gente,
Sem melodia e sem rima,
Não descia nem com aguardente.
Era um furdunço de estima.

E tinha muita estação
Que nem música tocava.
Era só uma falação
Das igreja que tentava
Enganar os sem-noção.
A coisa tava muito braba.

E nos baile do interior
Era de cair o queixo.
O forró que era um primor
E era tocado sem desleixo
Deu lugar a um terror
Chamado de reboleixo.

Ninguém mais se importava
Com as músicas de antigamente.
Aquelas beleza que dava
Alegria no coração da gente.
Só o barulho imperava,
Só a porqueira era vigente.

É a ignorância que se lastima
E faz o povo virar ralé.
Não adianta ter bom clima
Pra colher um bom café
Se quem foi pro andar de cima
Ninguém lembra mais quem é.

Nos seus dia o povo amava
Uma música de qualidade.
Tinha caboclo que suava
Pra ganha notoriedade.
Hoje em dia o que conchava
Vira logo celebridade.

Qualquer cabra embusteiro
Qualquer Mané Zé Ruela
Que se acha violeiro
E faz um som requenguela
Ganha rios de dinheiro.
Tudo filho de cadela.

E o que é de aborrecer
É pensar que o povo é bobo.
É pagar jabaculê
Pra tocá as música em dobro
Na danada da TV,
Nas novela da tal da Globo.

Muita gente de talento
Ainda existe por aí.
Esse povo tá ao relento
Ninguém nunca quer ouvir.
Pois só tocam os xexelento.
Que só fazem progredir.

Mestre Jackson ficou triste
Com o que viu e o que ouviu.
Ao ver que não mais existe
Em todo esse grande Brasil
Nem um grãozinho de alpiste
Da música que um dia existiu.

Algo tinha de ser feito
Pra mudar esse perfil.
Então estufou o peito,
Botou bala no fuzil,
E disse lá do seu jeito:
- “vão prás quenga que os pariu”!

E sem demora foi invadindo
Estúdio de rádio e gravadora.
Percebeu que não era benvindo,
Chutou bunda de produtora,
E sua raiva foi cuspindo
Desbancando muita cantora:

- “Minha gente faz favor
De melhorar um pouco isso.
Vamos cantar com mais fervor,
Compor com mais compromisso.
Esse povo sofredor
Merece mais reboliço”

- “O ouvido fica malsão
De ouvir assim tanta asneira.
Vamo acabá com o papelão
De cantá tanta tranqueira.
Vamo honrá as tradição
Da nossa música brasileira!”

- “E porque chamar de banda
Um quarteto, quinteto ou sexteto?
Esses cabra que desanda,
Tudo magro feito graveto?
No meu tempo só era banda
As que tocava em coreto”.

- “Pelo povo desvalido
Subo até mesmo em palanque.
Ninguém gosta de ruído.
Será que não tem quem desbanque
Essa música de bandido?
Essa desgraça chamada funk?”

- “Onde é que já se viu
No país de Lenine e Chico
O nosso querido Brasil,
Musicalmente tão rico,
Uma música tão imbecil.
O meu ouvido é penico?”

O discurso foi ouvido
Pelo povo boquiaberto.
Foi um discurso sentido,
De quem tava falando certo.
Foi conselho a ser seguido
Por quem fosse mais esperto.

E era importante o alerta
Porque sério era o assunto.
Mas mesmo com mente aberta
E sem preconceito junto
As palavra que era certa
Era as palavra de um defunto!

Por mais que fosse importante
Respeitá a voz de contralto
De antepassado tão extravagante
Que surgiu de sobressalto,
O mercado continuava pulsante
E a grana falava mais alto.

E quem tomou o corretivo,
E que não gostou do que ouviu,
Tudo produtor executivo,
De pavio curto ou sem pavio,
Fez ao fantasma explosivo
Promessas e promessas mil.

Disseram que dali em diante
Nada ia ser mais igual.
Que ficasse confiante
Todo o povo celestial.
A musica boa de antes
Ia voltá a ser atual.

O que o Mestre não sabia
É que o bando de cheiroso,
Tudo dono de companhia
Que vai na onda do Veloso,
Tinha a terrível mania
De ser tudo mentiroso.

Mentiam de noite e de dia,
Mentiam sem nenhum motivo,
E a fala enrolada que havia
Aquele jeito agressivo
Era comum na putaria
Do tal mundo corporativo.

Aquela falsa alegria,
Aquele jeito mascarado,
Aquele clima de orgia,
Aquelas roupa de batizado,
Era comum na putaria
Do tal mundo globalizado.

Então o velho Jackson, contente,
Pegou o caminho da roça,
Achando que tudo ia ser diferente.
Mal sabia da sujeira grossa
Que aquele povo indecente
Fazia de sua bossa.

O Mestre pro céu retornou
Louco pra contá suas valentia.
Cá na terra nada melhorou
Pois a música que se ouvia
Em pouco tempo voltou
A ser a mesma porcaria.

E depois de seu regresso
O povo feito criança,
Teve a idéia, num acesso,
De prepará uma triste vingança:
Pegá o seu maior sucesso
E transformá em lambança.

O Mestre nas nuvens vivia
Enquanto destruíam sua arte.
Para a vingança que se urdia
Chamaram um grupo de dá enfarte,
Os assassino da melodia
De nome Banda Restart.

E o que ocorreu afinal,
Rearranjado em forma de break,
Até que não ficou tão mau.
Foi gravado enfim o remake
E era assim: “this is how
The frog sings in the lake”.......

domingo, 10 de outubro de 2010

Quem em sã consciência...

cometeria o despautério de escrever um soneto sobre a "bunda"? Drummond? Bandeira? Quintana? Pouco provável. Não que eles não tenham escrito poemas eróticos. Escreveram sim mas estes ficaram guardados a dezessete chaves e só foram divulgados após a morte dos poetas citados. Eu, que não estou sob a pressão da fama e nem tenho compromisso com o bom mocismo, cometi, há alguns anos, esse desatino:



SONETO GLÚTEO


A este formoso pomo de dama
Que aos sonhos profundos inunda,
Que as horas ociosas inflama
E que se convencionou chamar bunda,
Às duas montanhas de almas gêmeas
Com textura de pele infantil,
Escultura propícia às fêmeas,
De incomum denominação gentil
É que componho este soneto fútil,
De estrutura elementar volátil
Para designar o meu amor glúteo
Que extrapola a sensação táctil
E reclama uma dentada útil
Na maciez de região tão retrátil.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Aqui vai mais um...

dos meus intermináveis sonetos!




CONGELANDO


O vento frio que me vem ao rosto
Traz um gosto acre de saudade
E as ruas tristes da cidade
A verdade de um eterno agosto.
O sangue, lentamente congelando,
Furta a minha última gargalhada,
Atrapalha a minha melhor piada
E do tempo vou me desligando.
A mão direita aos poucos endurece
E os versos escapam mutilados
Enquanto a alegria adormece.
O amor está desempregado
E o coração, sem ter o que carece,
Vai parando, vazio e congelado.

sábado, 25 de setembro de 2010

Mais um

dos meus intermináveis sonetos falando de amor!




COISA ENGRAÇADA



A solidão é uma coisa engraçada,
Quanto mais ela me invade o corpo
Mais a desejo num desejo torto
E mais a quero ter amenizada.
O amor é outra coisa complicada,
Quanto mais ele me inunda a vida
Mais me desespero na partida
E mais anseio ver a página virada.
Esse manto dissílabo e canalha
Quanto mais se encolhe ainda mais se espalha
Quando o mundo o estende sobre o vasto mundo.
E o peito, que antes era latifúndio,
Transforma o amor em algo nada amável
E a alma em charada indecifrável.

sábado, 18 de setembro de 2010

Aos dez anos de idade...

Fui à praia com a família e, numa tarde em que se prenunciava uma tempestade, minha mãe proibiu que eu saísse de casa. Minha querida avó, percebendo minha contrariedade, disse calmamente para eu esperar porque a chuva iria passar e eu poderia então ir à praia logo depois. Foi o que aconteceu. Nunca esqueci das palavras dela e da lição a qual, numa óbvia comparação, aplica-se a todas as dificuldades da vida. Aos vinte e poucos anos vivi uma cena de intensa chuva, mas agora na Rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, onde eu trabalhava. Lembrei da lição de minha avó e o poema que segue surgiu naturalmente, inteiro em minha cabeça. Só tive o trabalho de colocá-lo no papel...



CANÇÃO DA CHUVA


Assim que a chuva passar
A vida vai continuar,
Do ponto onde parou,
Da maneira exata como, em suspense, aguardou,
O final da umidade,
O cessar do vento,
A vida da cidade.
E o cão sarnento aos saltos
Voltará a esbarrar nas pernas dos incautos.
E a mulher obesa sacudirá o guarda-chuva
Ao se levantar, com dificuldade, da mesa
E as pessoas vão, aos poucos, voltar a rua,
Para a calçada úmida, há pouco nua
E a vida vai continuar,
Como sempre continua.
E os vapores exalarão do asfalto
E o sol voltará a brilhar na careca do homem alto
E permanecerão temporariamente os respingos,
Mantendo os objetos brilhantes, lindos,
Como peculiares e solitárias testemunhas.
E um dia a chuva volta, como quem não quer nada,
Molhando tudo, essa mal educada.

domingo, 12 de setembro de 2010

Níver!!!

ANIVERSÁRIO



Envelheço hoje, na convenção do tempo.
Estalam as juntas, acomodam-se os ossos
E descubro que os vôos já não são nossos,
Recolho as sementes lançadas ao vento.
As germinadas, já não as noto.
Limito-me a imaginar o tamanho,
O peso, a robustez do caule castanho
Das eventuais árvores onde broto.
Mais concreto hoje do que mês passado,
Mais próximo da lâmina do adversário,
Ainda busco caminhos impensados.
Mais atento ao que me sussurra o calendário,
Encontro as sensações do inusitado,
Evitando contar o tempo ao contrário.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Nessa madrugada quente...

Me lembro do longínquo ano de 1994, quando estive na Cidade do México e visitei a casa azul no bairro Coyoacan, hoje Museu Frida Kahlo, onde a pintora nasceu, viveu e morreu. Me apaixonei instantaneamente pelo lugar e por aquela estranha e linda mulher, falecida 40 anos antes. Anos depois, li nos jornais o registro da existência de uma "seita religiosa" cultora do "kahloísmo", baseada na maneira de viver e ver o mundo de Frida. Na época, fascinado, escrevi o poema que segue:


FRIDA



Esta noite eu sonhei com Frida.
Eu sempre quis ser livre e selvagem,
Sempre desejei a roupagem de uma nova vida.
Eu sempre amei Frida, antes mesmo da viagem.
Sabe lá o que eu quisera.
Quisera ser Diego Rivera,
Beijá-la todo dia,
Viver com ela na casa azul,
Esconder-me em seu armário,
Ser um pincel em sua mão tardia,
Afagado como os cães
Que habitavam seu relicário.
Passear com ela de manhã
Pelas ruas verdes e tranquilas de Coyoacán.
Quisera seu coração livre e mexicano.
Quisera admirar, na primavera,
O inverno de suas sobrancelhas,
Ser o vento colorido que a levou.
Quisera ser Rivera
E amá-la muito mais do que ele a amou.

sábado, 28 de agosto de 2010

Escrevi mais de 100 sonetos...

Porque acho bacana e ponto, apesar de já ter percebido alguns olhares de escárnio mal disfarçado quando digo isso. Aqui vai mais um deles...




CALMARIA


Quanto mais se faz pontiaguda
A flecha certeira desse cupido,
Mais com certeza fica dolorido
O alvo atingido e a dor aguda.
Hoje porém assim não sinto.
Apenas pressinto que a calmaria
Terna e morna de todos os dias
É a verdade de meu sonho suscinto.
É a mansa saudade que amadurece
E incandesce a tarde mais sofrida
De um amor que não dói nem arrefece.
Este o mais puro, da brasa nascida
E alimentada no calor diário
Que a alma acolhe eterno e agradecida.

domingo, 22 de agosto de 2010

Na solidão deste domingo...

Já que minhas meninas estão viajando bem prá longe, posto hoje um poeminha antigo e meio sem graça, uma vez que me sinto "sobrando"!




PALAVRAQUE

Palavraquenãoseuneàoutraépalavradeslocada.
Palavraquenãosesolidarizaécomofolhanabrisa.
Voasolitáriaedesamada.
Ébotãoprocurandoporcamisa.

Aspalavrasdevemserirmãseamigas.
Todasexprimindoamesmaidéia.
Devemesquecerantigasbrigas.
Seroperáriasdemesmacolméia.

Quesuperemdesavençasgramaticais.
Palavrassãovértebrasdeumasócobra.
Sãofrutodadesigualdadeentreosiguais.
Palvraquenãoseuneàoutra

sobra.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Já dizia Einstein...

Que a teoria da relatividade poderia ser explicada ao se imaginar o quanto a mesma unidade de tempo pode ser diferente, ou em outras palavras, cinco minutos beijando a mulher amada passam muito mais rapidamente do que cinco minutos com a mão encostada num fogão quente. Daí esse soneto.




HORAS DESIGUAIS


Todas as horas estéreis do dia
Que antes eram fáceis e passageiras
São agora pedras pontiagudas e frias,
São horas eternas, horas inteiras.
As noturnas, porém, quando ao teu lado,
São sorvidas com a ânsia dos moribundos
Pois valiosas como o leite derramado,
São as horas mais rápidas do mundo.
Gostaria de poder fazê-las lentas
Como longos os teus beijos abissais
Seriam no limiar do que a alma sustenta.
Resta-nos reconhecer como cais
A saudade que se transforma em tormenta,
No desconcerto dessas horas desiguais.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Em singela homenagem...

ao centenário de nascimento de Adoniran Barbosa, ocorrido no último dia 6, posto hoje outra história contada em minha coluna no site "Tulípio", conforme já anunciado em postagens anteriores.



BIFE OU TORRESMO?


Essa é outra das inúmeras histórias de Adoniran Barbosa e quem a conta é Carlinhos Vergueiro.
No final da vida e no auge do sarcasmo Adoniran estava compondo, juntamente com o próprio Carlinhos, a música “Torresmo a milanesa”, que viria a ser uma de suas últimas.
Por sugestão de Carlinhos, a letra tinha um trecho que dizia: “Arroz com feijão e bife a milanesa”.
A composição foi sendo feita por ambos, matutando sobre a letra, a melodia e a harmonia, Carlinhos de violão em punho, cervejinhas, acepipes e etc. De repente Adoniran diz: - “Não Carlinhos, isso não está certo”. Carlinhos olhou espantado, sem fazer idéia do que se passava e Adoniran emendou: - “Bife a milanesa não. Vamos colocar torresmo a milanesa”. “Por que torresmo Adoniran?” perguntou Carlinhos. “Porque não existe!”
“Ah”, continuou Adoniran, “E vamos colocar UM torresmo”. “Por que pôrra?”, ao que Adoniran responde com aquele brilhozinho criativo nos olhos: “Porque é mais triste pôrra!!!”

terça-feira, 10 de agosto de 2010

É fácil reparar...

Que nos meus escritos nunca busco o hermetismo deliberado. A poesia é quase sempre hermética porque nasce entre os desvãos da alma. Mesmo assim, entendo que o texto poético flui mais claramente se estiver isento de figuras indecifráveis. Por outro lado, às vezes sai um texto mais difícil, como este que posto hoje, em homenagem ao tipo de inverno mais agradável que existe: ensolarado e quente durante o dia e friozinho à noite. Dá pano prá qualquer manga!



SOL DE INVERNO


Sob o sol escaldante de um julho atípico,
Lembranças.
Luz do abajur da sala,
Sofá macio,
Rio de lembranças.

Sob os vinte e seis graus de um inverno mítico,
Sensações invertidas.
Água fresca no corpo,
Cheiro de perfume de criança,
Dança adulta.

Sob a certeza de um movimento elíptico,
Fatos repetidos.
Datas coincidentes.
Gosto de inverno que queima
E teima em vir.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Eu sei que vocês vão dizer...

Que é tudo mentira...trálálá-tralálá, e sei também que há alguns anos Arnaldo Antunes escreveu uma letra de música muito parecida com este meu texto postado hoje, mas eu juro que escrevi isso beeeem antes e que fiquei furioso quando ouvi a música pela primeira vez. É que às vezes, uma mesma idéia pode ocorrer a duas pessoas simultaneamente e, considerando o fato de que escrevi este texto antes e que Arnaldo Antunes sequer imagina a sua existência (e a minha), ambos são originais!



INDICAÇÕES

Para telejornal, tapaouvidos.
Para lições, sonhos amanhecidos.
Para reflexões, bulas.
Para leis injustas, burlas.
Para sermões, cachaça.
Para serões, optalidon e cachaça.
Para TPM, TFP.
Para TAM, JAL.
Para entender o Natal, rua.
Para trânsito infernal, lua.
Para papocabeça, coisaetal.
Para miudezas, tamanho descomunal.
Para navalha, cicatriz.
Para grandes gafes, embaixatriz.
Para Mickey, Minnie,
Para máxi, mini.
Para indecisões, tiroequeda.
Para cagões, paraquedas.
Para patriotas, verdamarelo.
Para compatriotas, sorriso amarelo.
Para mocinha, foco.
Para vilão, soco.
Para mulher bonita, postura enfadonha.
Para mulher feia, fronha.
Para golfinhos, Flipper.
Para boca grande, zíper.
Para embocadura, saxofone.
Para jogo bonito, Lazzaroni.
Para asterisco, ruptura.
Para obelisco, rachadura.
Para Asterix, aventura.
Para Obelix, ternura.
Para político corrupto, tiro.
Para vitamina C e cama, espirro.
Para dores nas costas, espinha ereta.
Para arroubos de puxassaquismo, espinha ereta.
Para gêmeas siamesas, bicamas,
Para mulheres pernambucanas, Bucchana’s.
Para catarro, cigarro.
Para aranha, arranha o jarro.
Para música boa, sorriso imenso.
Para chatos engraçadinhos, silêncio.
Para nada, tudo realizar.
Para tudo, poesia no olhar.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Essa é porreta!!!

Houve um tempo no Brasil em que tínhamos um presidente chique, poliglota, bem postado, bem falante e charmoso, que a todos convencia com a sua fala mansa. Na época, cansado do "bom mocismo" e da ineficiente politicagem tucana, escrevi esse texto que agora posto em forma de cordel. Uma delícia para escrever e, espero, para ler.






O DIA EM QUE PADIM CIÇO DESCEU DO CÉU E CONVERSOU COM FERNANDO HENRIQUE, NA ÉPOCA EM QUE ESSE ÚLTIMO ERA PRESIDENTE DO BRASIL.


Certo dia o Padim Ciço,
Já cansado dos altares,
Das alturas lá do céu
E da santice dos seus pares,
Resolveu descer à terra,
Disposto a fazer guerra.

E guerra iria promover,
Empunhando o seu cajado,
A tudo o que conseguisse ver,
Entre seu povo calejado,
Que estivesse por fazer
Ou que estivessem fazendo errado.

Era tanta coisa errada
Que o Santinho aqui foi vendo
E quanto mais perambulava
Mais desgraça acontecendo
Que o santo cabelo arrepiava
E a batina ia encolhendo.

Mas o Padim não se entrega
Apesar de tanto desgosto,
É que nesse Brasil a regra
Está estampada no rosto:
Enquanto o patrão sonega
Quem peleja paga imposto.


E o Santinho quase mudo,
Foi ficando furibundo.
Paga-se imposto prá tudo,
Um dos mais caros do mundo,
Isso é um grande absurdo
Prá sustentar vagabundo.

E o pior da situação
É que quem paga, afinal,
Não tem direito à educação.
Sabe escrever malemal.
E tá lascado o cristão
Que precisar de hospital.

Padim Ciço, assustado,
Concluiu com muita dor
Que o povo tá abandonado
Num país de aproveitador
Onde ladrão é deputado
E traficante é senador.

Como pode em terra tão boa
Ter tanta sujeira e trambique?
Pouca gente ganhando à toa
E tanto pobre indo a pique?
Só mesmo puxando a orelha
Desse tal Fernando Henrique.

E dito isso assim foi feito
Porque o padre, quando vivente,
Foi cabra macho e tinha peito
Prá enfrentar a toda gente.
Não tinha medo de nada,
Ia ter de presidente?!

E foi pegando a sua trilha
Partindo sem muita demora.
Foi-se embora prá Brasília
Pensando: “É agora !
Falo com o rei da quadrilha
Sem precisar marcar hora”.

“Aquele fio dum chifrudo
Que só do bem-bom desfruta,
Que tem desculpa prá tudo
E despreza aquele que luta,
Na verdade é um topetudo,
Um grande filho da ............”

Minha gente cuidado,
Não façamos confusão.
O último verso riscado
Foi prá testar a atenção.
Não vamos cometer pecado,
Santo não diz palavrão.

Ai que essa história se entorta!
Vamos voltar ao assunto.
O Padim chutando porta,
Quase fez um defunto.
A segurança quase que é morta
Quando o Santo chegou junto.

Foi direto ao Planalto,
Entrou sem deixar nome.
Esqueceu o salto alto,
Foi direto à sala do hôme,
E falou num sobressalto
Defendendo o povo com fome:

“Fernando Henrique meu filho”,
Disse o padre irritadiço,
“Gente não vive de brisa,
A situação tá difícil.
Arregaça a manga da camisa,
Vê se resolve isso!”

“Brasileiro virou mendigo
E os políticos da nação
Não sofrem nenhum castigo,
Isso é que é esculhambação.
Vou levar todos comigo
E entregar nas mãos do cão”.

O presidente assustado
Quase caiu fulminado
Tamanha a petulância
Daquela figura de plasma:
“Onde estava a segurança
Que não brecou o fantasma?”

“Fantasma é sua progenitora”
Disse o Santo bufando,
“Sou Cícero Romão Batista
E meu povo estou representando.
Tu está na minha lista,
Ouviu bem Sr. Fernando?”

“Nunca vi em minha terra
Tanta injustiça e desmando
O governo sela e ferra
O povo que o está sustentando.
Assim o cabrito berra,
Ouviu bem Sr. Fernando?”

E o presidente acuado
Resolveu entrar na dança.
Respondeu bem pausado
Coçando de leve a pança:
“Isso tudo é resultado
Da política de aliança”.

“Eu baixei a inflação
Quando criei o real
E tive que aumentar impostos
Prá garantir o capital,
Meu Padim tão querido,
Não me leve assim tão a mal”.

“Eu até estive pensando”,
Continuou o presidente,
“Em criar mais um imposto
Para aquele que é descrente.
Assim sendo a santaiada
Vai ficar tudo contente”.

“Já marquei para amanhã
Uma reunião com o mausoléu.
Já até conversei com o Malan.
O imposto do incréu
Vai ser todinho depositado
Lá na conta do céu”.

“Mas rapaz presidente”
Disse o Padim já sorrindo.
“Sendo assim é diferente,
Vê-se logo que gesto tão lindo
Só podia ter vindo de gente inteligente,
E eu aqui lhe afligindo”.

“Estou até envergonhado
De entrar aqui como um ciclone.
Fui tão afobado
Botei a boca no trombone
Com moço tão educado
Que até deu aula na Sorbonne”.

“Meu querido presidente,
Eu lhe faço uma proposta
Prá me desculpar da cagada.
Dispense logo os guarda-costas,
Embora comer uma buchada
Que eu sei que você gosta”.

E assim de forma diferente
Chega ao fim essa ode.
O povo continua descontente.
A esse, ninguém acode.
E o Padim Ciço e o presidente
Se refestelando no bode.

Pode ?!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Neste glorioso dia...

amarelamente ensolarado, fiquei rôxo de vontade de falar das cores.





CORES


A vida era bela.
Verdeazul, rosamarela.
Bordeaux-sangue venoso.
Azul escancaradamente claro, gazozo.
Rôxo-hematoma.
Rôxo-coma.
Rôxo de gozo.

A vida era serena.
Grená-gangrena.
Azul-marinho fosco.
Branco-Jesus-está-convosco.
Amarelo-carinho.
Amarelo-canarinho.
Amarelo-predisposto.

A vida era feliz.
Lilás-flôr-de-lis.
Laranja-tangerina.
Rosa-de-infantil-aspirina.
Vermelho-carmim.
Vermelho-clarin.
Vermelho-estricnina.

A vida era suportável.
Verde-água-não-potável.
Marrom-chocolate.
Azul-cádmio-cheque-mate.
Prêto-jaboticaba.
Magenta-o-Brasil-acaba.
Escarlate-apertão-de-alicate.

Hoje a vida é cinza.
Berrantemente cinza.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Já que...

A minha dentista gostou tanto do poema postado anteriormente e, falando de cátedra, já que tive tantos problemas dentários e passei madrugadas e madrugadas batendo a cabeça nas quinas das paredes na tentativa de aliviar a dor, posto hoje esse sonetinho escrito num momento de absoluto desespero dolorido/poético:




A CÁRIE

O açúcar avisa. Primeiro sinal.
Logo após a água fria. Segundo indício.
Então, sem tratado de armistício,
A cárie vence o fio dental.
Suplício mudo na madrugada,
Analgésicos nem arranham o mal.
Há que enfrentar, é fatal
O si-bemol da broca afinada
Que, afiada, esgarça o esmalte cinzento
Lançando ao céu da boca as sequelas,
Induzindo à eutanásia, em processo lento.
E quando as forças não são mais aquelas
Abdica-se da estética por um momento
E admira-se a impunidade dos banguelas.

sábado, 17 de julho de 2010

Há alguns anos...

elaborei esse auto-retrato que agora compartilho:




AUTO RETRATO

Às vezes sou erudito
Mas com o infinito circunscrito
Como o de um etíope míope.
Sou um Capitão Marvel com cara de bedel.
Um caranguejo com alma de badejo.
Nem Guilherme Tell nem Graham Bell.
Um heterossexual amoral que nunca frequentou bordel.
Outras vezes sou um pirralho grisalho.
Um espírito lírico com excesso de ácido úrico.
Dono de uma gastrite recorrente
E um discurso eloquente.
Corro dos falsos preços módicos
E das ameaças melódicas das moçoilas casadoiras.
Fujo dos chatos esféricos,
Dos chatos hiperbólicos
E dos ares cadavéricos
Dos frequentadores de bares seculares.
Cometo carradas de cagadas
Mas aprendo e permaneço benvindo.
Amo ver mulher sorrindo.
Acho lindo.
Brinco com crianças,
Sonho com quimeras
Começando pela beira das eiras sem elas.
Alimento-me da seiva de rosas amarelas
E choro pelos cantos pela perda dos encantos.
Assisto a vida do terraço
Mas sei fazer estardalhaço quando é preciso.
Sou liso.
Não encalacro, não enrosco.
Amo a vida mas tomo porrada dela.
No baço.
Saio no braço com ela.
Prossigo com dores no omoplata,
Mas com ares de diplomata.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Após um longo

e tenebroso inverno de Copa do Mundo, volto a postar hoje uma letra que virou música através do meu parceiro João Lúcio. É letra boa para quem conhece bem São Paulo!




CRUZAMENTOS


Todos os vidros estão fechados
Na Rebouças com Estados Unidos.
Todos os medos são divididos
Na Augusta com Caio Prado.
Todas as armas são de verdade
Na Pinheiros com Faria Lima.
Todos os versos ficam sem rima
Na Fagundes com Liberdade.
Todas as vidas viram entulho
Na Aurora com São João.
Todos os cegos estão sem cão
Na Lorena com Nove de Julho.
Todos os homens se chamam Zé
Na Angélica com Maceió.
As mulheres espanam o pó
Na Bartira com Sumaré.
Sempre faz frio mas nunca neva
Na Nebraska com Santo Amaro.
Qualquer descuido sai muito caro
Na Paulista com Itapeva.
Toda a fumaça emana dos carros
Na Vergueiro com Paraíso.
E os meninos perdem o juízo
Na Oratório com Paes de Barros.

E os meninos são mal-amados
E os meninos são mal-vestidos
E os meninos são inimigos.
E passam em passo apertado,
Lavando vidro,
Vendendo doce,
Provando o amargo,
Lavando a alma,
Vendendo o corpo,
Sorriso largo.

terça-feira, 6 de julho de 2010

HOJE NÃO É DOMINGO!

Mas bem que poderia ser.
Em homenagem a um domingo imaginário posto então um poeminha antigo sobre o que eu acho dele.



TARDES DE DOMINGO

Aborrecidas tardes de Domingo,
Entediantes horas de sossêgo,
De pensar na amada, de querer apêgo,
Resistindo à TV que sempre xingo.
Domingos longos, inteiros, perenes,
Tão distantes da próxima Sexta,
Da promessa de interminável festa,
Das mulheres, dos porres, das sirenes.
Balbucio de corações cansados,
Ressaca de sentimentos lindos,
Reflexão sobre os amores findos,
Sol estacionando sonolento,
Ar pesado, ausência de vento,
Aborrecidas tardes de Domingo.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Para não perder o trem...

...das terças-feiras, estou postando hoje um texto da nova safra.
Espero que gostem apesar do tom mórbido...






UM CEGO EXILADO NA BEIRA DO MAR




“Senti de repente a memória queimar,
Perdi os caminhos, a chave perdi,
E desde esse dia, sem nada me vi,
Um cego exilado na beira do mar”
Ariano Suassuna



De onde vem esse cheiro? É cheiro de leite azedo. Estou sentindo o gosto também, parece leite materno. Esqueci do adoçante. E esse ombro com blusa de lã verde? É o ombro de meu pai? Ele está me carregando no colo? O médico disse centenas de vezes que ele não pode fazer esforço, carregar peso...e porque estou agora deitado de costas? O que são esses objetos coloridos sobre a minha cabeça? Não consigo alcança-los...que vontade de chorar, berrar, chamar a atenção de alguém...estou com dor de barriga, estou com fome, acho que me mijei...que estranho...

E essa bola pulando na minha frente? Vou chutar pro gol. Foi gol!!! Quem são esses garotos correndo em minha direção e me abraçando? Os rostos são familiares, mas e os nomes? E esse barro todo no meu tênis? O que é isso que estou calçando? Conga??? Meu bolso está cheio de coisas. Bolas de gude, chiclete ping pong sabor tutti fruti, moedas...um maço de roliúde amassado com quatro cigarros dentro e eu fumando isso, que gosto estranho, que vontade de tossir...


Está tocando Imagine do John Lennon? Quem é essa menina dançando comigo? Virei pedófilo? Ela está tentando me beijar...diz que quer namorar? To fora! Quem são esses meninos tomando cuba libre? Cadê a mãe deles que não vê isso? E esses brigadeiros espalhados na mesa? Esse bolo em forma de campo de futebol com uma velinha acesa, imitando um jogador do meu time? Mas que time é mesmo?


Está crescendo muito pelo no meu corpo. Nossa, que sensação boa dirigir um automóvel. Cheiro de carro novo. Mas é um corcel 73? Que sensação mais maravilhosa ainda beijar essa mulher...não...meu Deus! É apenas uma menina e eu com a mão nos peitos dela! Ninguém está vendo? Como é bom transar, que sensação maravilhosa! Onde estou? Que cama redonda é essa? Estou sem camisinha. Quem é essa outra moça que diz que me ama? Ela usa DIU? Não? Puta que pariu. Fodeu! Falar com o pai dela? Cacete, que merda! Nasce quando? Porque estou careca? Universidade o que? Diploma? Gritaria? Minha mãe está chorando. Quem é esse bebê no meu colo?


Meu filho quebrou o que? Pagar? Eu? Quem é esse cara que fica mandando eu fazer isso e aquilo? Grávida de novo? Justo agora? Quem são essas pessoas de gravata nas mesas ao lado? Financiamento? O que é BNH? Quem é esse tal de Olerite? Minha cabeça está explodindo. De onde vem todas essas imagens, essas sensações familiares?


O que você quer dizer com divórcio? Pode ficar com a casa da praia. Só vou ver meus filhos no sábado? Porque essa ruiva está me beijando? Casar de novo? Não. Tchau. E essa morena? E esse bar, esses amigos, essas quantidades absurdas de uísque? Cadê meu carro? Pode levar tudo menos os documentos e tira esse revólver da minha cara que eu tenho dois filhos.

Cacete, quanto exame! Urina, sangue, fezes, ultrassom, cateterismo...cirurgia? Pôrra, porque? O que tem meu coração? Fritura, álcool, cigarro, não pode nada??? Engordei, emagreci, aposentei???
Fiquei com o saco cheio? Fluoxetina? Isordil? Viagra não pode??? Mas porque eu iria querer morar num flat? Ou num sítio? Estou bem aqui sozinho. A Cida cozinha e limpa bem. Quem é Cida? Onde estão meus filhos? E essa dor no peito que não passa?


Estou pensando nisso tudo há horas. Mas apenas alguns segundos se passaram. Estranho. A dor está piorando. Parece que tem um ônibus estacionado no meu peito. Cadê minha mãe? Há quanto tempo não dou um beijo nela? O que estou fazendo no chão? Quem vai me ajudar? Os pensamentos estão indo embora. Há quanto tempo não converso com meu pai? Parece que meus neurônios estão desligando um a um. Apaga essa luz forte aê!!! O que são neurônios? Cadê meus filhos? Como é mesmo o nome deles? O que são filhos.........

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Coluna no Tulípio!

Mais um texto veiculado na minha coluna no site do Tulípio, cujo endereço está na minha penúltima postagem. Visitem!



VENDE-SE MEIO SAMBA.



Já ouvi o presente causo contado por Beth Carvalho e Carlinhos Vergueiro, em momentos distintos e com algumas diferençazinhas aqui e ali. Esta é uma versão intermediária, que pinça verdades nas duas anteriores para compor um honroso um a um.

Compor em parceria sempre foi uma história complicada. Pior do que casamento de marido beberrão com mulher dadeira. Pois em priscas eras a coisa era ainda pior. Época em que se vendia um samba para garantir o almoço do dia seguinte, época em que a legislação autoral ainda borrava as fraldas. Hoje engatinha. Pois é fato que naquele tempo a maneira de se compor em parceria era um pouco diferente. Não era comum um parceiro fazer a letra inteira e passar ao outro para musicá-la, ou vice-versa. A praxe era que um fizesse a primeira parte do samba, música e letra, e entregasse ao parceiro para que este fizesse sozinho a segunda parte, ou terceira. Foi nesses moldes que um dia os saudosos Cartola e Nélson Cavaquinho compuseram um samba que até hoje permanece inédito. Não porque não fosse bom, fato impossível a se considerar o calibre de ambos, mas porque foi motivo de clima ruim entre os dois.

Permanecendo inédito, como já se disse, o tempo passou e Cartola acabou esquecendo da existência do pobre samba. Até um determinado começo de noite em que, bebericando incógnito num canto qualquer, na época em que ainda era um mero pintor de paredes, ouviu um sujeito forte e bem vestido cantarolando “aquele” seu samba com o Nélson, inteirinho, palavra por palavra, numa mesa ao lado. Imediatamente foi até o grandalhão e perguntou de quem era a autoria, já prevendo o pior. O sujeito respondeu numa entonação de não permitir dúvida: “É MEU”!!!

Pêdavida, Cartola engoliu ar e foi ao encalço do parceiro. Assim que o encontrou já foi perguntando de longe: “Nélson, você por acaso vendeu aquele nosso samba, pôrra”?! Ao que Nélson, sem tirar os olhos do copo, respondeu com voz emborrachada: “Só a minha parte”!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Mais um poeminha!

Hoje, para não dizerem que não falei das flores, mais um poeminha de amor novo/antigo escrito em um momento de impasse. Mas vale.



AMAR É...


É preciso alertar os filósofos do “amar é”
É necessário dizer que o amor incomoda
Preenche espaços como quem invade.
É preciso observar que a maré
Não está para peixe nem nada que nade.

É preciso ver que o amor não é tão bonito,
Que causa dor, desprezo, inveja,
Que faz da vida interminável conflito,
Por mais bonito que o início seja.
O amor é um sentimento aflito

É preciso gritar que o amor também mata
Como a vida, de desespero, descontrole, tédio.
É nó que ata mas desata no ato
E fica uma doença que não tem remédio.
O amor é um sentimento chato.

sábado, 19 de junho de 2010

site do Tulípío!

Para aqueles que ainda não sabem, apesar de amplamente divulgado por este que vos tecla, mantenho uma coluna no site do TULÍPIO, imortal personagem criado pelo amigo Eduardo Rodrigues e que tomou vida através do desenho de Paulo Stocker. O endereço é http://tulipio.uol.com.br/
Esta coluna, chamada "O Samba na Realidade", conta histórias verdadeiras dos grandes mestres da música brasileira. Vou postar algumas aqui, para quem ainda não leu lá.



ADONIRAN E OS GALINÁCEOS

Contava Dona Mathilde Rubinato, quando já viúva do saudoso Adoniran Barbosa, que este adorava comer macarronada com frango assado todos os domingos, chovesse canivetes abertos ou fizesse sol. Mas a particularidade é que Adoniran, por capricho ou apego às tradições do interior, preferia ir comprar o frango ainda vivo, para assassiná-lo com um pescoção no aconchego de seu vasto quintal.

Ocorre que Dona Mathilde conhecia muito bem seu marido e por isso mantinha no congelador um frango previamente decapitado, depenado e comprado no mercadinho mais próximo. Isso porque, todo o santo domingo, Adoniran ia até a granja, comprava o frango mais bonito do corredor da morte e o trazia para casa debaixo do braço, bem apertado, para evitar que o bicho batesse as vigorosas asas e escapasse, como é direito de qualquer prisioneiro prestes a ser impiedosamente executado. No caminho para casa, porém, Adoniran vinha conversando animadamente com o animal, ainda que este não lhe respondesse palavra, por incapacidade ou por paúra. Fato é que se afeiçoava ao bicho, lhe colocava um nome e, como era de se esperar, não tinha coragem mais de matá-lo. Dona Mathilde já sabia que, ao chegar em casa, Adoniran lhe diria: “Velha, prepara o falecido porque a Jurema eu não vou matar não”! E era o que de fato acontecia.

Uma vez que a farsa se repetia todos os domingos, do quintal de Dona Mathilde já não se via o chão, tamanha a quantidade de galinhas ciscando e fazendo as suas franguices. Adoniran, satisfeito, brincava e conversava com elas, acariciava-as e chamava cada uma pelo nome, que apenas ele conhecia e distinguia. E a conta do milho subia consideravelmente.

terça-feira, 15 de junho de 2010

oração.

Se um dia, algum desavisado alto mandatário de uma religião organizada me desse a difícil incumbência de criar uma oração, talvez eu criasse uma igual a esta, que não privilegia este ou aquele ícone religioso mas a humanidade e seus percalços, como expressão máxima da divindade na face da terra.




ORAÇÃO

Que forte faça-se a brisa,
Brandos os bandos de aves.
Que os tiros atinjam as traves
E leves levitem as ogerizas.
Que, compreensivos, comparemos as eras.
Taxativos, taxemos o ódio.
Abnegados, abdiquemos do pódio
Pródigo das onipotentes esferas.
E belos, embelezemos os luares
E o ar e o dia e os anos
E as lavouras, os sorrisos e os olhares.
Que possamos perfumar os danos
E pluralizar as alegrias singulares
E mereçamos a alcunha de humanos.

domingo, 13 de junho de 2010

Trilha sonora.

Este último conto deve ser lido com o acompanhamento desta trilha sonora maravilhosa!

http://www.youtube.com/watch?v=qTlyG_R6eh4&feature=related

sábado, 12 de junho de 2010

Autobiografia.

Em tempos de Copa do Mundo (que maravilha!), posto hoje um conto baseado em fatos reais e autobiográficos, alusivo ao tema.




O SEQUESTRO DO PONTA ESQUERDA



Esta história se baseia numa premissa inteiramente falsa. Pra começo de conversa, destaque-se que o seqüestrado em questão não era ponta esquerda de quatro costados. Quando muito, um meia esquerda improvisado na ponta, num time de muitos craques, posto que se assim não fosse, certamente não encontraria guarida naquela constelação de gênios. Em segundo lugar, não se pode também falar em seqüestro, sendo que nem resgate foi pedido pelo meliante. Além disso, a vítima não era uma pessoa de carne e osso mas sim um mero objeto e pequeno de caber em qualquer bolso, o que automaticamente desclassifica o delito de seqüestro para o de um mero furto, teoricamente menos grave. Apenas teoricamente, mesmo porque a teoria não contempla o valor da “res furtiva”, analisado por vieses subjetivos e passionais.

Isto posto, passa-se à análise do caso, não sem antes empreender uma viagem temporal ao longínquo mês de agosto de 1970. Pois é certo que nesse tempo, de agruras militares e torturas milenares, o menino Carlos Augusto, ou simplesmente Cacau, como lhe alcunharam os moleques daquela rua tranqüila e simpática da paulicéia, contando com incompletos 11 anos, sonhava apenas com a Copa do Mundo do México, recém terminada com um retumbante sucesso da seleção canarinho. As únicas imagens que lhe preenchiam a memória visual eram as dos 19 gols marcados nos seis jogos que a seleção brasileira vencera rumo ao tri, tanto que decorou as jogadas na mente e elas ficariam indelevelmente marcadas até o fim dos seus dias. Os sons que recordava e repetia sem cessar, em altos brados para desespero dos pais, eram aqueles criados pelo imortal Geraldo José de Almeida, com erres exagerados ao narrar os jogos: “QUE BOLA BOLA” ! “PORRRR MUITO POUCO, MUITO POUCO, POUCO MESMO” ! “OLHA LÁ,OLHA LÁ, OLHA LÁ, NO PLACAAARRRRRRRRR”!

Fato é que, por aquela época, uma conhecida indústria de brinquedos lançou um jogo de futebol de botão com a seleção tricampeã do mundo. Cacau, já apaixonado pelo jogo de botões, viu aquela reluzente equipe amarela transformar-se imediatamente em seu mais intenso sonho de consumo. Estudou, cortou grama, lavou o carro do pai, foi comprar pão, tratou a irmã caçula com carinho, comeu salada e fez promessa. Tudo para conseguir seu intento. E acabou conseguindo. Ganhou do pai, em reconhecimento tardio, num dia qualquer, sem que fosse aniversário, um pacote transparente com os sonhados onze “cracks” dentro. São os melhores presentes os inesperados. Aquele time de botão representava para ele seu melhor e definitivo brinquedo. O brinquedo de sua vida. Em segundo lugar, longe, muito longe, vinham o autorama, que lhe custou várias visitas aos avós, e o Forte Apache, naquela altura já com várias falhas nas paredes de madeira, índios e soldados carcomidos pelos incipientes dentinhos da irmã e cavalos pernetas.



Abriu sofregamente o pacote dilacerando o plástico da embalagem e conferiu, astro por astro, a escalação. Eram botões com a foto pretebranca dos jogadores. Lá estavam eles. Félix, o goleiro, com suas longas e espessas costeletas, baixo, magro e fraco tecnicamente, mas um goleiro necessário apesar de sua preferência recair em Ado ou Leão, os reservas. Não era um goleiro tipo “caixa de fósforo com pilha dentro”, como Cacau costumava confeccionar. Apenas uma chapinha de plástico com a foto colada e uma haste de metal atrás para movimentá-lo. Melhor partir logo para a linha. Brito, zagueiro, com a barba sempre mal feita. Inevitável perceber o quanto era chegado nuns goles. A expressão bovina denunciava, mas naquele tempo Cacau ainda não a reconheceria. Wilson Piazza, meio de campo do Cruzeiro daquela lendária safra, cuja estrela maior, Dirceu Lopes, sequer havia sido cogitado na convocação derradeira. Piazza agora era improvisado como zagueiro, coisa que nunca foi, cedendo à infinita criatividade daquela comissão técnica biônica e milica. Everaldo, lateral gaúcho/macho, precocemente falecido num acidente automobilístico após a Copa e Carlos Alberto, o “Capita”, lateral direito de larga qualidade, de Santos e Fluminenses, cujo gesto de levantar com as duas mãos a pequenina e extinta Jules Rimet era freqüentemente imitado por Cacau, usando o copo do liquidificador de sua mãe, imaginando o Azteca lotado, aplaudindo-o por horas a fio. Esse som da turba Cacau imitava perfeitamente, abrindo a boca e lançando ar sem nenhum som.

Defesa completa, partir para o meio de campo e ataque era uma verdadeira covardia. Era o time dos sonhos, considerado bem mais tarde como o maior time de todos os tempos. Clodoaldo, ou “Clodô”, valente médio volante, ou como se chama atualmente, “volante de contenção”, era um craque. Gérson, com sua calva formando um triângulo invertido no cucuruto, imitado em 2002 por Ronaldo Fenômeno (ninguém notou?), e seus passes de 40 metros nem se fale. Pelé, com seu cabelo tipo “americano 1”, dispensa qualquer comentário que acrescente algo aos compêndios já escritos e falados. Jairzinho, o “Furacão da Copa”, no cume de sua forma e de seu futebol. Doutor Tostão, antes da bolada no olho que o afastou dos campos, talvez o melhor complemento ao futebol do Rei, o queijo minas que colava à goiabada cascão e produzia o melhor “romeu e julieta” já visto. E finalmente Rivelino, inexplicavelmente sem bigode, o meia improvisado como ponta esquerda, móvel desta história, com sua indefensável “patada atômica” como se dizia na época. O time estava deliciosamente completo!


Cacau telefonou imediatamente para todos os amigos da rua e marcou um campeonato para o dia seguinte no Estádio Augusto Lima, o popular “Gutão”, sendo que Gutão era seu vizinho da frente e o Estádio propriamente dito era a mesa de jacarandá de Dona Lídia, mãe de Gutão, apenas utilizado em ocasiões especialíssimas, como finais de campeonato ou jogos de revanche. Era o “Maracanã” deles, mais por suas especificidades propícias ao futebol de mesa, assim como as largas medidas e a capacidade de deslize, do que pela disposição de Dona Lídia em ceder a sua centenária mesa de jantar. Na verdade, os meninos em mutirão enceravam a mesa após as partidas porque Dona Lídia não tinha a menor idéia de que ali eram realizadas disputadas porfias. Uma marca de dedo naquela mesa, que pertencera à sua bisavó portuguesa, significaria para Gutão um mês sem sobremesa, talvez dois sem televisão.
Reprimenda tão cruel merece um parágrafo a parte. Ficar sem televisão naquela época, para Cacau, Gutão e companhia bela, todos na casa dos 10, 11 anos, significava perder os grandes jogos de futebol, nos quais, num domingo ruim, se via em ação Pelés, Edús, Leões, Ademires da Guia, Rivelinos, Gersons, etc, etc, e ficar também sem “seguir” as novelas Pigmalião 70 e, principalmente Irmãos Coragem. Todos costumavam cantar “Irmãos, é preciso coragem...” e gostavam de João Coragem e de Jerônimo, às voltas com a prima Potira (assunto bacana para um garoto). Mas todos se identificavam mesmo com o personagem Duda, interpretado por Cláudio Marzo, que além de ser jogador do Flamengo na trama, desfrutava invariavelmente da companhia de Ritinha e de outras belas moças. Este último assunto, definitivamente, já os interessava naquela altura, tanto ou mais do que o futebol. Mal sabiam que iria interessá-los pela vida afora e quantas besteiras fariam, no futuro, em nome disso.


Fato é que o campeonato foi combinado convenientemente no horário em que Dona Lídia iria ao cabeleireiro e às compras. Na hora marcada estavam todos lá. Gutão, o dono do “campo”, com seu quase imbatível time do Santos, feito com capinhas de relógio pintadas a mão, Beto, com seu time misto de botões de casaco e outros jogadores “negociados” nas ruas do bairro, Juvandir, que também respondia pela alcunha de Vandinho, com seu reluzente Flamengo vendido em pacotes, um a um, nas bancas de jornal e Cacau, com sua seleção canarinho tinindo de nova.


Sorteios de grupos feitos, o Santos de Gutão ganhou do mistão do Beto por 1 a 0 e Cacau goleou o Flamengo de Vandinho por 2 a 0, gols de Pelé e Rivelino. Gutão e Cacau foram para a final e Cacau venceu por 2 a 1, gols de Jairzinho e novamente Rivelino, com um chute indefensável que bateu na trave e entrou, eleito o craque do torneio. Os placares eram baixos porque os jogos duravam apenas 5 por 5 minutos, fruto da paúra que os garotos tinham de que Dona Lídia esquecesse algo em casa e voltasse mais cedo, irrompendo na sala e pegando todos em flagrante. Terminados os jogos, todos guardaram seus botões rapidamente e foram para suas casas, a tempo ainda de assistir “Perdidos no Espaço” e de fazer a lição de casa.


Após o jantar em família, em que Cacau narrou entusiasmadamente ao pai todas as grandes jogadas que praticara naquela proveitosa tarde e engolida a última colherada do arroz doce, que odiava e a mãe insistia em fazer de sobremesa, voou para seu quarto para treinar chutes a gol com seu time recém campeão. Assim que abriu sua caixinha de botões algo lhe disse que faltava um. Procurou todos os botões amarelos e constatou com um arrepio na espinha que Rivelino não estava mais entre eles. Imediatamente telefonou para Gutão e o desespero em sua voz era evidente. Não, Rivelino não estava lá, perdido em algum canto, muito embora Cacau tivesse obrigado Gutão a procurá-lo pelo menos umas dez vezes. Então a resposta era óbvia: irritado com a retumbante vitória de Cacau, alguém surrupiara a revelação do torneio, justo ele, por pura e terrível vingança, ou para evitar novas derrotas no futuro. Os suspeitos eram apenas dois, já que Cacau confiava cegamente em Gutão: Vandinho ou Beto. Ou os dois, em conluio criminoso!

Durante toda a manhã seguinte, na escola, Cacau pensou em planos de vingança e recuperação do precioso jogador. Cogitou esfaquear os amigos com um abridor de cartas que ganhara de uma tia, pagar resgate com figurinhas carimbadas, chicletes Adams e outros gêneros de primeira necessidade, implorar a devolução do botão ou até mesmo surrupiá-lo de volta, mas foi o valoroso companheiro Gutão quem lhe sugeriu a solução definitiva. Argumentou que não poderiam criar um clima ruim com Vandinho e Beto, caso contrário não poderiam mais convidá-los para futuros campeonatos e não teriam quem golear, já que os dois jogavam muito menos do que eles. Além disso, o pai de Beto era alto funcionário da Kibon e seus aniversários eram concorridíssimos, com farta distribuição de sorvetes e chocolates. Perder essas festas seria o cúmulo da exclusão social e gastronômica. Isso era impossível suportar. Assim sendo, tinham que pensar em uma saída mais honrosa e menos traumática. Gutão revelou a Cacau que dois dias antes estivera na sessão de brinquedos do supermercado próximo à casa deles e viu vários pacotes de botões já abertos, com jogadores faltando. Inclusive o da seleção brasileira!


De posse de tão valiosa informação, Cacau não pensou nem meia vez. Chegou em casa, inventou uma desculpa para a mãe e voou para o super, enquanto Gutão já se incumbia de telefonar para os dois suspeitos, marcando o campeonato daquela tarde. Mal podiam esperar para ver a cara dos dois quando Cacau aparecesse com um Rivelino novo, com cara de desentendido, sem passar recibo do furto ocorrido na tarde anterior. No supermercado o coração de Cacau dobrara os batimentos. A primeira coisa que viu na sessão de brinquedos foi um pacote de botões da seleção brasileira já aberto, tal qual Gutão lhe afiançara. Melhor do que isso, o primeiro jogador visto no pacote foi um Rivelinão, sorrindo para ele e pedindo: “me leva, me leva”! Numa fração de segundo o botão já estava no bolso de sua camisa e Cacau voltou para casa feliz, sem nenhuma migalha de arrependimento. Os pacotes já haviam sido abertos e devidamente furtados. Não se sentia criminoso. No máximo tratava-se apenas da continuação de um delito iniciado por outrem. Se a polícia descobrisse o autor principal a ele seria creditado também o furto do Rivelino. Além disso tinha sido escandalosamente roubado na tarde anterior e aquilo que acabara de praticar era apenas uma mera e justa reposição.


O campeonato daquela tarde foi arrasadoramente fácil. Abatidos moralmente, Vandinho e Beto sofreram goleadas impiedosas. O Rivelino novo de Cacau fez até gol olímpico! Como se dizia na gíria da época: deitou e rolou! Os dois supostos larápios não acreditavam em seus olhos! Como Rivelino ressurgira? Era a concretização de seus piores pesadelos.


Cacau e Gutão trocaram olhares cúmplices e riram muito.



A noite, em casa, Cacau estava exultante, ainda comemorando as novas vitórias e estava treinando em seu quarto quando o pai chegou do trabalho. Desavisadamente disse ao pai que recuperara o seqüestrado. O pai quis saber como e ele orgulhosamente narrou os detalhes da aventura certo de que o pai admiraria a sua esperteza. O efeito foi dramaticamente oposto. Em acesso de fúria o pai puxou suas orelhas com fé, bradou códigos de honra da família, vociferou que nunca pegara nada que não lhe pertencia na vida e ordenou que o pobre Rivelino teria de ser devolvido ao pacote de origem na manhã seguinte, assim que o supermercado abrisse as portas.


Importante salientar que aqueles eram tempos em que os filhos sequer ousavam argumentar com os pais, quanto mais desobedecer uma ordem tão clara e definitiva. Fato é que às 8 e meia da manhã do dia seguinte Cacau estava na porta do supermercado, com o craque no bolso, esperando abrir as portas. Foi infinitamente mais difícil recolocar o botão no pacote do que retirá-lo. Primeiro porque sabia que nunca mais recuperaria o valioso artefato e que seu time permaneceria para sempre incompleto. Segundo porque só agora lhe ocorria a gravidade do ato. Só então temeu ser pego em flagrante delito. Como explicar que estava devolvendo o botão? Ninguém acreditaria. Rodeou o pacote aberto cinco, seis vezes e só recolocou o botão quando teve certeza absoluta de que nenhum olhar suspeito o espreitava. Saiu em desabalada carreira de volta a casa, chorando muito no caminho. Uma mistura de vergonha e sentimento de derrota.


O fato que importa é que a lição foi aprendida. Pelo resto de sua vida Cacau manteria guardado a sete chaves o time de botão incompleto como uma prova contundente do amor paterno. Ah, e apesar de convidado, nunca aceitou um emprego em Brasília. .

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Escolhendo a pior data.

Mário Quintana morreu em 05 de maio de 1994. Uma quinta-feira. Alguém imagina o que estava acontecendo no Brasil exatamente neste dia? Ayrton Senna havia se esborrachado no muro no dia 1º de maio, ou seja, no domingo anterior. Seu corpo chegou ao Brasil naquela semana e o sepultamento ocorreu apenas na sexta, dia 06.
Sendo assim, muito pouca gente percebeu ou se emocionou com o passamento do poeta que morreu quietinho, lá em Porto Alegre. Pouca gente no seu enterro. Lembro-me de uma pequena nota nos telejornais e só. O Brasil chorava a morte de outro filho.
Daí esse poeminha.



MÁRIO QUINTANA, O PIOR ESCOLHEDOR DE DATAS


Mário como eu sou Mário,
Que como eu não é de Andrade,
Mas que viajaste tantos versos
E foste poeta de verdade,
O que houve contigo, amigo,
Que resolveste singrar outros mares?
Decerto cansaste enfim
De teus saborosos quintanares.
Mas por que, após noventa anos
Escolheste partir, que pena,
Justamente na mesma semana
Da morte de Ayrton Senna?
Teu brilho foi chamuscado
Diante da nação em dor,
Mesmo para quem conheceu
Teu imenso e real valor
Na verdade não passaste,
Continua passarinho,
Só escolheste momento ingrato
Para abandonar teu ninho.
Teus versos continuarão brilhando
Enquanto brilhar a lua,
Mas veja se da próxima
Escolhe uma data só tua.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Solidão definitiva?

Ah, as manhãs ensolaradas de inverno...
Elas nos fazem mais felizes do que achar dinheiro no bolso de um casaco antigo.
Pelo menos para mim.
Daí é inevitável pensar no amor.
Aí vai mais um soneto cometido em nome dele. Ele é o culpado.



SOLIDÃO DEFINITIVA

A noite é longa e fria.
Não me é dado saber o porque,
Nem como, mas só penso no que
Tua ausência me causaria.
Penso em não estar contigo
Tanto quanto na solidão definitiva
Que improvável, todavia aflitiva,
Azeda a vida, destila o castigo.
Penso em você agora e talvez
Como se incerta a tua permanência,
Como se fosse a última vez.
Tento adequar meu paladar à ciência
De sorver a doçura que brota abundante
Do sorriso que traduz tua transparência.

sábado, 5 de junho de 2010

Adauto

Já que estamos no meio do feriadão e, teoricamente, as pessoas tem mais tempo para ler (pelo menos deveria ser assim), resolvi postar um conto beeeeem loooongo, baseado em fatos mais ou menos reais (qualquer semelhança é mera coincidência). Apresento um personagem novo, o Adauto, típíco paulistano da classe média quase alta. Sei que muitos torcem o nariz para um texto tão longo, pelo menos é o que dizem meus amigos que defendem a concisão do conto, mas, apesar de tudo isso, vou arriscar. Boa leitura.




UMA SEQUÊNCIA MAIS OU MENOS LÓGICA


Adauto chegou em casa tarde naquela quinta-feira chuvosa. Uma e meia da manhã. A sexta seria puxada na produtora, pensou. Mas não dá para recusar os convites para o chopp das quintas-feiras com os outros professores da FAAP. É muito divertido conversar com o Pedro Henrique, professor do curso de artes plásticas, com a Simone, com a Odete, ambas colegas suas, professoras no curso de comunicações, mais especificamente no curso de rádio e TV e com os demais agregados que sempre pegam carona e acabam aparecendo na pizzaria. A imediata sensação de solidão que sente quando entra em seu apartamento Adauto costuma remediar ouvindo os recados na secretária eletrônica, várias e várias vezes. Sempre sua mãe pedindo alguma coisa, seus irmãos, sobrinhos, e poucos amigos convidando para um jantarzinho no final de semana. Não, o vatapá do Fábio ele definitivamente não aguentava mais. Sua solidão só não poderia ser maior porque seu apartamento era pequeno e não permitia grandes espaços vazios à sua volta. Era uma solidão contida em limites estreitos, mas nem por isso deixava de machucar, algumas raras vezes. Então, naquele dia um recado o intrigou:

- “Alô, Adauto?, Ana Beatriz, lembra? Sou da sua turma na ECA..., Não vejo você desde 75, faz tempo, né? (silêncio constrangedor, alguns ruídos não identificados). Acho que você nem vai lembrar de mim mas tudo bem. Olha, eu gostaria de falar com você. Me liga. Meu telefone é 3813-7752. Beijão viu!...
-
Apesar de perceber que a voz na secretária estava trêmula e que a pessoa deveria estar profundamente constrangida em deixar aquele recado, Adauto fez as contas de cabeça, sabendo não ser o seu maior talento: “Estamos em 2007 e nos formamos em 75. Deve ser algum jantar atrasado, comemorativo dos 30 anos da formatura. Estou fora! Esses jantares são chatíssimos. Lembra do Chiquinho? E do Zé Libelú? Não, esse não, estou falando do Zé que saía com a professora de cinema lembra? Aquela que era casada e dava prá todo mundo?..... Isso é um porre.” De mais a mais não fazia a menor idéia de quem era a tal de Ana Beatriz. Desprezou o recado. Adauto tem agora 56 anos. É do tipo que acrescenta a expressão “Graças a Deus” após dizer que é solteiro. Desde os vinte e poucos anos mora completamente só, exceção feita a algumas namoradas esporádicas que iam dormir em seu apartamento uma noite e acabavam ficando cinco ou seis, para seu total desespero. Uma vez terminou um namoro de três anos porque a namorada deixou a calcinha pendurada no box do banheiro.

Seu apartamento é sóbrio, pesado, decorado com móveis escuros, madeira cor de tabaco. As poucas paredes livres dos livros, CDs, vídeos e DVDs são de cores frias. Ele é uma pessoa discretíssima, de aparência sóbria e não fosse pelos entregadores de pizza e de comida chinesa que eventualmente sobem ao seu apartamento os vizinhos jurariam que ele já estaria morto há uma semana, exalando um cheiro insuportável, caído no chão do banheiro, fio de sangue escorrendo da boca. Tem ogeriza de pipocar a pele das reuniões de condomínio. Nunca apareceu. Limita-se a pagar sem reclamar os acréscimos na taxa condominial, sejam por conta do dissídio dos porteiros ou da limpeza das pastilhas externas do prédio. Apesar de cantarolar esporadicamente uma canção do Vinícius, que em determinado trecho diz: “e aí a criançada toda chega e eu chego a achar Herodes natural”, ele até que gosta de crianças, principalmente das confinadas em suas respectivas casas. Hoje, sua alegria mesmo são seus sobrinhos, nascidos de dois irmãos mais novos. Mas apenas depois que eles atingiram idade suficiente para entender uma conversa razoavelmente inteligente. Ricardo tem 17, Lucas 15 e sua preferida, a afilhada Ana Carolina, 19. Todos são orgulhosos do tio que já trabalhou na produção dos documentários da Globo e do GNT, já ganhou prêmios e que hoje tem sua própria produtora, onde a sobrinha Carol estagia desde que entrou no curso onde o tio leciona, há um ano. Comparece só de corpo aos almoços dominicais em família. E é só. Quando não está na produtora Adauto está no cinema, assistindo a todos os filmes iranianos com legendas em russo, ou lendo em casa.


Mas nem sempre foi assim. Nos anos 70 Adauto era muito diferente. Barbas e cabelos longos, sem ver pente há meses. Idéias revolucionárias na cabeça. Jaqueta militar de veterano do Vietnã. Viagens de carona. Conhecer o Brasil sem um tostão no bolso. Discos do Jimmy Hendrix, Chico/Caetano, Dylan/Baez. Stones/Beatles. Livros, Marx/Macluhan. Filmes, Truffaut/Godard. Às vezes ele pensa como é estranho ter se trasformado num “tio sukita”, tendo um passado tão interessante, tão alternativo e conclui que, hoje, isso tudo não é mais underground. Época de amor livre. Maconha e ácido. Festas intermináveis. Fugas da polícia. Passeatas. Festas intermináveis. Sexo sem fronteiras. A boca de Glorinha. As pernas da Sandra. Os seios de Heleninha.... Ana Beatriz! Quem era Ana Beatriz???

Adauto chegou a ser preso em congressos clandestinos da UNE. Apanhou da polícia, passeou em chiqueirinho de camburão. Ele gosta de imaginar que contribuiu com o processo de abertura democrática no país e se orgulha disso. Mas no fundo sabe que delataria a cidade inteira mediante a simples visão de um pau-de-arara. Foi pensando nisso tudo e em como a tal de Ana Beatriz se encaixava nessas histórias que ele adormeceu naquela noite.

Dia pesado aquele seguinte. Mil decisões e contratos para analisar na produtora. Telefone tocando sem parar. Conversas intermináveis, problemas, penca de e-mails para responder. Por volta das três da tarde Adauto já queria estar em outro lugar. Em casa, talvez. Foi exatamente o que ele fez. Foi para casa. Mas só depois das 10 da noite.

O hábito apertou o botão de recados da secretária eletrônica e aquela voz doce ecoou na sala novamente:

- “Adauto, oi (ar simpático meio forçado), sou eu de novo, Ana Beatriz (risada forçada). Desculpe insistir viu?! Mas é que estou realmente precisando falar com você. Não é nada urgente não, mas acho que é importante. Você lembrou de mim....de quem eu sou? Será? (outra risadinha daquelas). Me liga tá? Passei meu telefone ontem para você. Estou ligando aí mas não te encontro nunca. Não tenho seus outros telefones. Desculpa se eu incomodei. Beijããão”.

Alguém morreu, pensou. Só podia ser isso. Mas quem pôrra?! Para saber só retornando a ligação para a misteriosa “Ana Beatriz”, cujo nome já lhe aguçava a imaginação de maneira quase que insuportável. Tá bom, pensou, na minha faixa etária infarto costuma ser fulminante e todos os antigos colegas estavam nessa mesma faixa etária. O Zé Libelú, talvez? Ele tomava todas, tomava ácido, fumava maconha o dia todo, era meio gordinho, será? O Luiz Augusto? Da última vez que se encontraram ele trabalhava num banco. Esse tipo de trabalho encurta a vida das pessoas, poderia ser ele...Meu Deus, o Chiquinho, será? Mas absolutamente nada na voz de Ana Beatriz indicava que o telefonema era para contar desgraça. Aquela doçura, aqueles risinhos nervosos, sei lá. Para saber só retornando. Mas não hoje. No fim de semana talvez, pensou depois da pizza requentada e da Bohemia um pouco quente, já adormecendo diante de uma sensual Lauren Bacall, preta e branca na tela da televisão.


Sábado de manhã tem feira, pastel e cervejinhas com os amigos de bairro, o mesmo bairro de tantos anos e tanta resistência, uma Vila Madalena chique e ao mesmo tempo deteriorada, que em nada se parece com aquela verdadeira cidadezinha do interior dos gloriosos anos de chumbo. Mas o pastel e a cerveja continuam os mesmos. Apenas os amigos mudaram e, ah!, a paisagem. Depois da feira, do samba e das cervejas Adauto desaba no sofá da sala. Alcança, sem levantar, o botão da secretária eletrônica que grita:

- “Barulho...barulho....vozes..........risos..........Adauto?, Sou eu de nooovo, Ana. Lembrei que você morava na Vila Madalena. Eu também moro! Incrível, né?! Se você ainda morar aqui e quiser nos encontrar...(ruídos/vozes) estamos almoçando no Galinheiro, sabe? Vem prá cá vai?! Estamos ansiosos. Ou então me liga depois. Olha, meu celular é 9234-9434. Beeeijo.”

Adauto pulou do sofá e olhou o relógio. Três e meia, será que ela ainda está lá? Galinheiro, duas quadras daqui, saiu ventando! Chegando ao Galinheiro passeou o olhar por todas as mesas lotadas, as pessoas na calçada esperando mesa, nada. Nenhum rosto familiar. Não vou sair perguntando o nome das pessoas, pensou. Deu meia volta e foi para casa. Mas aquelas palavras corroíam-lhe a alma de curiosidade. Quem era essa mulher, Meu Deus?

De repente o telefone, ríiiiing (ou alguma dessas campainhas modernas eletrônicas). Sacou rápido o fone: - “Alô? Do outro lado, “Oi, é a Ana”. “Ana Beatriz”???? quase gritou. “Não tio, Ana Carolina. Não conhece mais minha voz”? “Ah, é você”? “Nossa tio, que voz desanimada, sou eu sim. Quem é essa Ana Beatriz? Namorada nova hein tiozinho? Conta vai”! “Pára Aninha, nem brinca com isso. É uma antiga colega de faculdade que tem telefonado mas eu nunca estou em casa para atender”. “Liga você pra ela então. Ela não deixou o telefone”? “Deixou mas eu não estou afim de ligar. Fala, o que você quer”? “Ah tio, vai comigo numa festa hoje”? “Nem fodendo. Assunto número dois, fala...”. “Não, era só isso. A festa vai ser boa, na casa da Dani, lembra dela”? “Lembro, mas estou estourando de dor de cabeça, me poupa dessa tá?!” “Tá bom tio. Vou indo porque você está um saco”. “Tá bom, tá bom, beijo, beijo, tchau”. Desligou. Pôrra, que susto!

Mais uma das festas das amigas da sobrinha ele não agüentaria. Aquela cambada de “new hippies”, garotos cabeludos, menininhas de vestidão, meia colorida e chinelo franciscano, Não! Vinis de Led Zeppelin, frases feitas, cachaça e maconha a granel, Não! Ele sempre se sentia um total estranho nessas festas. Um hippie de verdade, de poucos cabelos aparados, impecavelmente barbeado, de camisa de algodão listrada, sapato e meia, calça de sarja. O máximo de descontração que conseguia era o “pull over de cashemere” jogado displiscentemente sobre os ombros. E a moçada perguntando como foram os anos 70, querendo saber segredos revolucionários, perguntando, perguntando, e aquelas vozes: “Minha tia era vizinha do Marighella”.... “Meu pai serviu exército com o Lamarca”....Saco! Ídolos de verdade reduzidos a vizinhos da tia da Dani! Saco!

Mas esses pensamentos carregados de um sarcasmo que chegava a lhe dar prazer não desviaram o foco do que realmente estava importando agora: o último recado de Ana Beatriz. Rodou o recado novamente. Ouviu com muita atenção e imediatamente algumas palavras o intrigaram. “Se quiser NOS encontrar”. “ESTAMOS ansiosos”. Porque o plural? Será que ela estava com o marido? Chegou a desejar que não. Será que alguém da antiga turma estava com ela? Bem mais provável, mas quem? A Heleninha talvez? A Sandra? Mas ele se recusava a reencontrar antigas namoradas. Preferia lembrar delas no frescor dos 20 e poucos anos a constatar como estavam em “escombros” na meia idade. Adorava a palavra “escombros”. Era como se referia ao atual aspecto de seus antigos objetos de desejo. Brigitte Bardot e Rachel Welch, por exemplo. Uma vez encontrou uma “ex” num Fran´s Café da vida e fingiu que não viu. Confortável e conveniente. A simples visão de uma “ex” no esplendor dos 50 e poucos destruiria anos e anos de devoção às suas memórias mais eróticas e fantasias sexuais mais criativas. Mas o fato é que, uma vez mais, uma singela voz sem rosto o incomodou como nunca.

Adauto deixou o sábado acabar depois de acabar com duas garrafas de um bom malbec argentino. Estou bebendo demais, pensou, antes de dormir no sofá até a claridade do domingo entrar veneziana adentro. Deve ter sonhado com uma Ana Beatriz familiar, com o rosto de uma ex-namorada qualquer e o corpo da Rachel Welch, em 1969, mas o excesso de álcool passeando por sua corrente sanguínea impediu que ele se lembrasse de qualquer coisa. Levantou como se tivesse passado a noite dançando tango, com um curioso e simétrico desenho de almofada de chenile na face esquerda e foi se arrumar para o almoço na casa de sua mãe. Afinal, era domingo!

Desde que o Sr. Rodolpho (assim, com pêagá), pai de Adauto, Afonso e Ambrósio, falecera em 2001, os almoços dominicais eram a única alegria de Dona Leocádia. Receber os filhos e os netos rendia assunto para a semana inteira com as amigas do prédio. Dona Leocádia, por razões que só as mães poderiam explicar, sempre se preocupou muito mais com Adauto do que com os filhos mais novos. Principalmente quando os primeiros sinais de que permaneceria solteiro começaram a aparecer. Desde cedo, portanto. Adauto, porém, limitava-se a explicar para Dona Leocádia que ainda não encontrara uma “boa moça” (palavra mágica para quem é mãe). Isso não a convencia. Sempre existia a sobrinha solteirona de uma amiga do prédio, ou uma prima de segundo grau vinda do interior, a filha de uma amiga da igreja, algumas, enfim, das “boas moças” que Dona Leocádia insistia em apresentar para Adauto. Em todas as vezes que isso ocorreu o desastre foi inevitável. Constrangimentos, situações absurdas, ausências inexplicadas, tudo aconteceu, a ponto de seu apelido em família se consolidar como “velho-do-rio”. Mas naquele domingo, Adauto sentia-se diferente. Uma inexplicável sensação de conforto, de amparo, de que fazia parte de um grupo, tomou conta dele, devagar.

Dona Leocádia foi a primeira a perceber: - “Você está diferente, filho. Não sei, está com um ar bom. Conte-me as novidades”. Adauto comparava a mãe a um detector de mentiras humano. Nada lhe escapava e era impossível, para ele, mentir sobre as situações mais corriqueiras. “Nada mãe, o de sempre, o de sempre”. “Então porque esse ar parado, de quem está longe daqui e esse meio sorrisinho no rosto”? “Ah, sei lá mãe. Andei recebendo uns telefonemas de uma antiga colega de faculdade e não consigo me lembrar dela”. “Vai ver sua mente não está lembrando mas seu coração sim”. Aquelas palavras bateram em Adauto com a violência de um tsunami. Daí a criançada toda chega, e ele ficou quieto o resto da tarde. Seus irmãos, cunhadas e sobrinhos perceberam. A sobrinha, Ana Carolina, tentou contar como foi a festa da noite anterior e que os amigos todos perguntaram dele, como se ele fosse um deles que havia inexplicavelmente faltado. Mas ele não deu atenção a uma palavra sequer. Foi para casa no início da noite, ávido por ouvir os recados na secretária eletrônica.

“Não há novos recados”, disse-lhe a voz metálica. Um soco no estômago no finalzinho do fim de semana. Agora só lhe faltava a trilha sonora: “olhe bem, preste atenção...nada na mão nessa também”. Isso era o fim! Chega de domingo, pensou Adauto. Resolveu ir dormir cedo para abreviar o fim de semana. Que venha a segunda-feira com seus doces problemas! E a segunda veio com o peso de um container em queda livre. Ele sequer teve tempo para refletir sobre os últimos acontecimentos. No finalzinho da tarde parou para um café perto de casa. Daí Ana Beatriz invadiu seus pensamentos novamente. Tentava caçar mentalmente fragmentos de antigos rostos, sons de vozes femininas, aromas, mas sua memória visual, auditiva e olfativa lhe faltavam. “O Cerqueira !!!”, pensou alto em pleno Fran´s Café.

Cerqueira era um velho e fiel amigo, daqueles poucos que restaram. Mesmo assim não se viam ou falavam há quase um ano. Analista dos bons, do time da psicanálise, não havia de lhe negar amparo num momento desse. Ligou do celular ato contínuo:

- “Cerqueira meu velho”,
- “Adauto? Pôrra, quanto tempo hein cara!”
- “Estou precisando te ver o quanto antes”
- “O que houve?”
- “Te explico quando chegar aí. Posso ir?”
- “Agora ? Eu estava saindo do consultório, mas te espero. Morreu alguém ou coisa parecida ?”
- “Não. Te explico quando chegar. Estou perto daí”
- “Ta bom, venha”
- “Té já”.

Chegou em cinco minutos ao consultório instalado no Sumarezinho suando, quase surtando de ansiedade:

-“Cara, você não sabe o que está me acontecendo”. Contou tudo em detalhes. O que mais lhe incomodava era não lembrar de Ana Beatriz, de não registrar nenhum detalhe sobre a dona daquela voz doce e ao mesmo tempo firme, carinhosa e serena. Cerqueira ouviu tudo em silêncio profissional e como Adauto não era seu paciente, resolveu falar o que pensava:

- “Adauto, você está ansioso demais. Você está projetando imagens afetivas e está sofrendo com a possibilidade de se frustrar. Isso é loucura Cara! Liga logo pra essa mulher e desfaz esse mistério.”
- Cerqueira, pôrra, para com esse psicanalistês! O que é isso?
- É a poltrona, disse Cerqueira.
- O que? Respondeu Adauto dando um salto olímpico que o jogou em pé, no meio da sala.
- É nessa poltrona que meus pacientes sentam. Força do hábito, sabe? Calma Adauto, senta aí e continua. Desculpe.
- “Não é tão simples Cerqueira. Não é tão simples !” Nem sei quem ela é. E se for uma mala, e se for alguém a quem prejudiquei, pisei na bola, sei lá. Naquela época eu fiquei com muitas mulheres e no dia seguinte nem me lembrava. Cruzava na USP e nem tchum ! A gente vivia maluco. Será que você não lembra?”
- “E se for isso, qual é o problema ? Você acha que ela está te procurando depois de 30 anos prá te cobrar alguma coisa ? Prá te esculhambar, te sacanear, sei lá ? Acho meio óbvio que a intenção é pacífica. Pode ser que você tenha sido uma paixãozinha dela na época. Agora ela se separou e está procurando possibilidades no passado, até aí tudo bem. Tem muita gente que faz isso !”
- “Você não tá entendendo Cara. Você sabe que eu não quero nada com ninguém, que adoro ser sozinho, que não me liguei a ninguém por opção.”
- “Ei, ei, ei, para aí ! Você não me contou que ela te pediu em casamento pela secretária eletrônica. Para com isso. Liga prá ela e marca um encontro. De preferência em lugar público pra evitar que ela te estupre. Deixa de ser cagão, pô. E fique certo de que isso não é opinião profissional. É de amigo. Pelo menos olhe umas fotos antigas para ver se ela aparece numa delas. Quem sabe você acaba lembrando ?!”
- “Ta, vou ver o que eu faço”.

Chegou em casa e ouviu todos os recados em sequência, várias e várias vezes. Algumas passagens continuavam deixando-o intrigado. O que será que ela tinha de importante, mas não urgente, para falar? Chegou a pegar o telefone para ligar mas olhou para o relógio e encontrou a desculpa que precisava. Quase meia-noite. Não é hora de ligar para a casa dos outros. Frase típica de Dona Leocádia. Amanhã ligo sem falta. Foi seu último pensamento conexo do dia.

Terça é o dia mais besta da semana, pensou no café da manhã. Não é mais segunda, o pior dia da semana mas que pelo menos se assume como um dia péssimo, ainda não é quarta, centro matemático da semana e para piorar ainda está longe do fim da semana. É um dia sem caráter. Sem cara. Até o trânsito fica melhor às terças, por algum desses motivos inexplicáveis. Talvez porque os todos os cidadãos motorizados odeiem tanto as terças que façam questão de ir de ônibus para o trabalho, numa espécie de protesto mudo, de desobediência cívica cuja intenção final é extirpar definitivamente a terça dos calendários do mundo. Esse pensamento era sinal de um atroz mau humor. E ele era famoso pelo mau humor. Como costumava dizer, mau humor é como colesterol: tem o bom e tem o ruim. O bom é acompanhado de um salutar e inevitável sarcasmo. Mas o problema maior é que a noite iria dar aula na FAAP e estava totalmente sem saco. Pior, estava sem saco de ir para a produtora. Costuma dizer que a vida é tudo aquilo que acontece enquanto ele NÃO está lá. Mesmo assim Adauto resolveu que iria cumprir todos os seus compromissos naquele dia. De repente, um instinto de auto-proteção, um lampejo de lucidez lhe ocorreu. Ele não podia ficar assim tão abalado por causa de dois ou três recados de uma pessoa que ele não sabia bem quem era. Isso, além de absurdo, era ridículo para um homem da sua idade e intelecto. Como bom virginiano, metódico e calculista, Adauto resolveu fazer o que mais gostava: Colocar pingos nos ís! Organizar a mente em caos. Deixar de andar nas nuvens e voltar para o planeta Terra. E assim os dias se sucederam. Nenhum recado mais foi deixado por Ana Beatriz. Sua ansiedade diminuía dia a dia. As coisas foram gradativamente voltando seu “status quo ante”. O Cerqueira talvez não fosse tão bom conselheiro quanto imaginara, pensou. Onde já se viu, telefonar para alguém desconhecido para tirar a limpo história nenhuma! Tocou a vidinha.

Assim, com seu cotidiano agitado porém monótono, Adauto sentia-se mais confortável. Os sobressaltos da vida o abalavam mais do que a qualquer pessoa que conhecia. Não sabia lidar com o inusitado. Amava rotinas. Que ninguém o convidasse para uma festa ou viagem repentina. Ele não aceitava, inventava desculpas e ainda ficava com raiva de quem o convidava. Onde já se viu. Compromisso com ele, só com antecedência. Mesmo assim ele necessitava saber quem estaria presente. Dependendo, desmarcava. Era um eremita por devoção. Um João Gilberto sem Grammy e sem violão. Só queria paz e sossego. Queria enterrar esse assunto. Ocorre que o Cerqueira tinha conexões com Dona Leocádia que Adauto desconhecia. Atendera Dona Leocádia após a morte de Seu Rodolpho pelo menos três vezes, a pedido de Adauto, e desde então criara laços de amizade com ela. Às vezes Dona Leocádia telefonava. Às vezes era Cerqueira quem tomava a iniciativa. Às vezes marcavam um chá no fim da tarde e conversavam longamente sobre Adauto, sobre a morte, sobre a vida,...ambos adoravam essas conversas. Dona Leocádia porque isso a aproximava mais do filho, ao seu ver, problemático e porque era uma oportunidade de conhecê-lo através de outros ângulos, outros olhares. Cerqueira porque sentia falta da mãe já falecida e projetava em Dona Leocádia todo o amor contido e toda a angústia de filho ausente e culpado. Fato é que a história de Ana Beatriz continuou a render assunto. Pelo menos entre os dois.

Nesses telefonemas e encontros furtivos, Dona Leocádia e Cerqueira discorriam longamente sobre a solidão de Adauto. Dona Leocádia preocupava-se muito. Mais dia menos dia ela se ausentaria. O que seria do filho? Cerqueira argumentava que ele já sabia se virar sozinho, que era independente, que um dia iria encontrar alguém mas aos olhos de uma mãe nada soa mais falso. Ela achava, porque precisava achar, que Adauto ainda lhe pertencia e dependia dela. Chegaram a cogitar um encontro casual forjado entre Adauto e Ana Beatriz. Essa mulher desconhecida poderia ser a solução. Aparentemente ela havia abalado o filho. Adauto jurava não se lembrar dela mas seu comportamento dizia o oposto. Mãe sabe ! Mas como forjar esse encontro ? Precisavam, antes de mais nada, tentar contato com Ana Beatriz. Uma conspiração estava em curso.


Pensaram inicialmente em contratar um detetive. Solução cara. O melhor seria entrar no apartamento de Adauto quando ele não estivesse e ouvir as mensagens na secretária eletrônica, tentando conseguir o telefone de Ana. Corriam o risco dele já as ter apagado. Era o mais provável. Mesmo assim, resolveram arriscar. Dona Leocádia sabia que a neta, Ana Carolina, tinha a chave do apartamento. Ela ia lá às vezes, na ausência de Adauto, assistir algum filme antigo, procurar um livro, fazer um strogonoff para o tio (ele adorava), ou simplesmente para levar uma pizza e um vinho e esperá-lo chegar para mais um longo papo cabeça. Mas teriam de incluí-la no “plano”. Ana Carolina idolatrava o tio, prezava demais a amizade sincera que ele lhe dedicava e herdara dele a integridade e a retidão. Dificilmente concordaria em compor o pelotão de fuzilamento, principalmente sabendo que esta verdadeira armadilha poderia desagradá-lo profundamente. Corriam o risco até dela revelar o plano a Adauto com antecedência. Seria um desastre completo, mas tinham que arriscar. Dona Leocádia marcou uma tarde com Cerqueira e chamou a neta para um chá. Aninha ouviu tudo sem interferir e, ao final de um longo silêncio, após um suspense insuportável, abriu um sorriso lindo e disse que era a melhor idéia que a avó tinha tido. Seu maior objetivo era ver o tio feliz, sem aquele ar grave e as olheiras de Boris Karloff, fruto, certamente, das noites de insônia. Se ele não dormisse, que não fosse por angústia. Não queria nunca mais ouvir o tio dizer, pausadamente: “O mundo Aninha, o mundo é uma merda !”. Podiam contar com ela!


No dia seguinte Aninha deu uma desculpa para o tio na Produtora e escapou no fim da manhã. Foi direto para o apartamento dele. Deu outra desculpa esfarrapada para o porteiro, como se fosse uma estranha no prédio, entrou como se fosse uma ladra e voltou a fita da secretária como se fosse uma espiã. Ouviu os recados, aliviada, um a um. O tio não apagara nenhum. Excelente sinal. Ligou para a avó do celular:


- Vó, os recados estão todos gravados! Sabe o que significa?
- Sim minha filha. Eu sabia que ele não ia apagar. Anotou o telefone dela?
- Lógico Vó. Ai Vó, a voz dela é de gente do bem, sabe?
- Que bom, que bom, vem logo pra cá e você aproveita para almoçar comigo. Vou esquentar aquela lasanha de domingo, que você adorou.
- To indo, beijo.


Na casa da avó, Aninha gastou pelo menos meia hora descrevendo a voz de Ana Beatriz. Era uma voz doce, confiável. Dona Leocádia sentiu uma quentura no coração, como que antevendo a vinda de tempos mais felizes para o filho. Ela já estava com idade suficiente para saber que não estaria perto por muito tempo mais. Era fundamental para ela que Adauto estivesse “encaminhado” e em paz. Isso significava paz para ela também. As duas devoraram em tempo record a lasanha requentada e resolveram telefonar para Ana Beatriz logo após, ambas com o coração aos saltos.

- Quem vai ligar Vó?
- Você né Aninha!
- Por que eu?
- Imagine que você é ela. O que você pensaria de um homem de cinqüenta e poucos anos que manda a mãe ligar para uma mulher?
- Sobrinha adolescente não é muito melhor, né?!
- E o Cerqueira? Perguntou Dona Leocádia.
- Não sei Vó. Amigo ligando também não é muito bom. Acho que sobrou pra mim mesmo, né?!
As duas ensaiaram um texto e Aninha teclou os números cuidadosamente, tão nervosa quanto se estivesse ligando para um garoto por quem estivesse apaixonada.


- Alô,
- Alô, pois não.
- Quem está falando?
- Rita. Quer falar com quem?
- A Ana Beatriz está?
- Está sim, quem vai falar?
- Diga que é Ana Carolina. Ela não me conhece mas eu preciso falar com ela.
- Ta bom, um segundinho....

Intervalo interminável..........

- Alô, pois não?
- Ana Beatriz?
- Sim.

O coração de Aninha quase sai pela goela afora.

- Meu nome é Ana Carolina e eu sou sobrinha do Adauto, sabe?
- Ah sim, eu andei querendo falar com ele mas não consegui. Aconteceu alguma coisa com ele?
- Não, não, ele nem sabe que eu estou ligando. Eu é que peguei seu telefone na secretária eletrônica dele e estou ligando. Desculpa viu?!
- Tudo bem, tudo bem. Você está nervosa?
- Um pouco.
- Notei pela sua voz.
- Pois é, eu e minha avó (a avó beliscou Aninha e fez um gesto desaprovador) queríamos falar com você, sei lá, é possível?
- Sim lógico. Pode falar.

Aninha levou uns 20 minutos explicando a vida do Tio, falando maravilhas dele, dizendo porque decidira ligar, etc, etc, de forma desconexa e confusa, mas Ana Beatriz entendeu imediatamente a situação.

- Aninha, nós somos xarás, né?!
- É, somos.
- Olha, eu conheci o seu tio há muitos anos. Nem sei se ele lembra de mim. Nós estudamos juntos na faculdade, sabe? Mas depois eu perdi o contato com todos, me casei, etc e agora estou precisando falar com ele, mas não é bem porque você está imaginando. Tenho um assunto muito pessoal para falar com ele, sabe?! Mas se ele não estiver querendo falar comigo, tudo bem. Nada vai mudar, entendeu?
- Entendi sim Ana (quase escapou um “tia” Ana). Então acho que o melhor a fazer é tentar convence-lo a ligar para você, né?!
- Não não, por favor não faça isso. Não quero incomodar nem parecer invasiva. Se ele não quiser falar comigo, repito, não tem nenhum problema. Só acho uma pena porque, pelo que você me contou, talvez a vida dele mudasse bastante depois dessa conversa. Eu liguei umas duas ou três vezes mas ele não estava em casa. Deixei recado e tudo mas ele não me retornou. Talvez ele não queira falar comigo, então tudo fica mais delicado, entendeu?
- Sim é lógico.
- Pois é. O melhor a fazer é nem contar a ele que você me ligou. Fica sendo um segredo nosso. Assim ninguém se constrange. Concorda?
- Lógico, lógico.
- Adorei falar com você viu xará?! Você é uma graça. É muito bonito o amor que você tem por seu tio. Ele deve ser uma pessoa realmente especial. Um beijo tá ?!.
- Outro “tia” (escapou).

Aninha estava com lágrimas nos olhos. A avó também. Tudo voltara à estaca zero! Só restava voltar para a produtora do tio, enfrentar a tarde de trabalho, e o tio, como se nada acontecera, com a cara lavada e passada. Foi o que ela fez, engolindo aquelas emoções confusas que acabara de sentir.

O problema é que ela estava agindo como se tivesse traído seu tio querido. Eles sempre jogaram muito limpo um com o outro. Ela estava quase contando tudo para ele. Ensaiou duas ou três vezes, entrou na sala do tio decidida a contar, mas na hora recuava e inventava uma desculpa qualquer de trabalho. Adauto percebeu que algo estava diferente com a sobrinha. Tanto que por volta das 5 e meia da tarde a chamou em sua sala e fechou a porta. Mau sinal, pensou ela. Providencial, por outro lado, pois Aninha não era de deixar as coisas pra lá. Quando queria dizer algo, acabava dizendo, de uma forma ou de outra. Então, antes que Adauto pudesse pronunciar a primeira sílaba, ela tomou a iniciativa das beligerâncias e atacou:

- Muito cômodo da sua parte, muito covarde viu?
- O que Aninha?
- Nunca pensei que você fosse assim tio, nunca pensei. Acho muito deselegante, desagradável...sei lá. Já vi gente tímida, gente egoísta, gente que não gosta de ter contato com gente, mas igual a você??? Isso é patológico tio, acho que você precisa se tratar, acho que você precisa...
- Aninha, para com isso! O que aconteceu? O que eu fiz?
- O problema não é o que você faz. É o que deixa de fazer!
- O que eu deixei de fazer então?
- As pessoas telefonam, querem contato com você e você não dá retorno. Se fecha nessa sua concha inesgotável e ninguém consegue penetrar.
- Inexpugnável.
- O que?
- A concha. Inexpugnável é melhor.
- É.
- Do que exatamente você está falando Aninha. Sei muito bem que seu discurso não prima pela coerência mas agora confesso que nem eu, que te conheço tão bem, consigo entender.
- Ana Beatriz.
- O QUE ???
- Sim, é isso que você ouviu. Eu sei que ela andou ligando, deixando recado e você não retornou. Você acha isso bonito?

Algo no tom de voz da sobrinha lembrou sua mãe.

- Aninha, você nem sabe quem é esta pessoa. Para dizer a verdade, nem eu sei! Você não acha que está exagerando? Fazer esse drama por causa de uma pessoa que nem sabemos quem é. Aliás, você andou escutando os meus recados? Isso sim é feio!
- Tio, você até não sabe quem é mas eu sei! Disse ela, ignorando a indignação de Adauto, aliás, legítima.
- Então quem é? Como você sabe?
- Eu liguei pra ela.
- COMO ???
- É. Liguei porque fiquei curiosa. Ela estudou com você na Faculdade e quer muito falar com você. Ela disse que é importante. Aliás, ela é uma pessoa muito legal e me fez jurar que eu não te falaria nada.
Adauto sentiu-se repentinamente acuado. Mas respirou fundo e continuou...
- Pois é Aninha. Você não acha isso muito pouco? Uma pessoa que sumiu de vista há tantos anos, telefonar agora? O que você acha que pode ser? Com certeza é para dizer que alguém morreu ou então ela está querendo reunir a turma, querendo fazer uma festinha deprimente com vários cinquentões carecas e gordos querendo cantar as cinquentonas botoxizadas e de cabelo tingido. Estou fora! Você me conhece. Sabe que eu odeio isso!
- E você acha que isso seria motivo para ela ligar tantas vezes? Você acha que se fosse apenas isso ela diria o que me disse?
- O que exatamente ela te disse?
- Disse que foi uma pena você não ter telefonado de volta porque o que ela tem a te dizer poderia transformar tua vida.

Aquela frase foi definitiva e o atingiu com uma força desproporcional. A partir daquele momento Adauto não ouviria nem uma palavra sequer, ainda que Aninha as disparasse, num discurso frenético e apaixonado. Imediatamente ele sentiu toda a inquietação tomar conta do seu cérebro. O coração disparou e ele começou a suar. Era preciso resolver isso de uma vez por todas. Adauto, num impulso, pediu para Aninha continuar o palavrório mais tarde, resolveu rapidamente o que tinha para resolver, assinou o que tinha para assinar e foi para casa.

Entrou no apartamento frio e foi direto para um armário. Fuçou, removeu caixas e mais caixas, papéis amarelados e finalmente encontrou uma pasta azul cheia de fotos antigas. Lembrou do conselho de Cerqueira. Aquela mulher tinha que ter uma cara! Só assim ele se sentiria seguro para ter algum contato com ela. Olhou as fotos uma a uma. Isso consumiu algum tempo. Até que achou uma foto dos tempos da USP. Uma festa qualquer num sítio. Era uma foto colorida mas nem tanto. Nos anos 70 as fotos tinham um colorido peculiar, meio puxado para sépia. Foi identificando uma a uma as doze pessoas que ali estavam estampadas. Parecia uma foto tirada num intervalo de show em Woodstock. Todos cabeludos e barbudos. Mulheres com cabelos longos e encaracolados. Figurino puramente underground (para a época). Olhou detidamente para a sua própria imagem, sentado no chão, e lembrou do quanto gostava daquela jaqueta jeans esfarrapada. Ao seu lado o Zé Libelú, amigão querido dos velhos tempos, baixinho e gordinho. Por onde andaria? Atrás dele, com as duas mãos em seus ombros, uma moça ruiva, com doces olhos azuis. Seu coração deu pulos. É ela!!!

Ele ficou alguns minutos admirando a fotografia e pouco a pouco algumas portas de sua memória foram se abrindo e possibilitando o acesso a outras salas fechadas há muitos anos, que davam em outras e outras localidades de sua mente e ele foi se lembrando de inúmeras situações há muito esquecidas. Todas elas relacionadas àquela ruivinha bonita da foto. Sua memória era visual. Nomes ele não lembrava nem os de sua família, mas a simples visão daquele rosto foi suficiente para ele se lembrar que tivera um caso com aquela moça, naquela época. Talvez até a história tenha começado no dia em que a foto fora tirada. Lembrou de odores, palavras, músicas que tocavam naquele tempo. Tudo foi voltando numa sequência mais ou menos lógica . Pelo menos para ele era lógica.

Lembrou, inclusive, que saiu com aquela moça algumas vezes, durante pelo menos um ou dois meses e que, de repente, ela desapareceu e ele soube que ela estava namorando sério com outro cara da turma. Mas ele não se lembrava com quem. Até ficou triste, na época. Ele estava “quase” apaixonado. Ela tinha, na verdade, dado um “fora” nele, da pior maneira que alguém pode dar um fora em outro alguém, ou seja, sumindo sem dar mais notícias. Porque estaria telefonando agora? “Eu sabia que era isso”, pensou em voz alta. Ou ela está querendo se redimir ou está querendo sair comigo, pensou. Mas porque depois de tantos anos? Ela deve estar desesperada mesmo! No fundo ele sabia que só descobriria a verdade se telefonasse para ela. Olhou o relógio. 19:35 horas. É cedo. Não conseguiu arrumar nenhuma desculpa para não telefonar. Ligou a secretária eletrônica. Ouviu os recados, Anotou o telefone dela, 3813-7752, e em seguida teclou o número, de forma automática, sem pensar. Ou ele faria isso num ímpeto ou não faria.
Ana Beatriz atendeu o telefone após dois toques:

- Alô.
- Ana Beatriz?
- Sim, quem é?
- Adauto.
Um silêncio constrangedor se seguiu.
- Alô, Ana?
- Desculpe Adauto. Você me pegou de surpresa, sei lá....nossa!
- Você não está podendo falar?
- Não é isso. Posso falar sim. Eu deixei vários recados pra você há duas ou três semanas...
- Eu sei, eu sei. Só não dei retorno antes porque estava bastante ocupado no trabalho, sem cabeça, sabe?
- Tá bom, mas acho que você conversou com sua sobrinha hoje, não é?
- É, conversei.
- Eu pedi para ela não te dizer nada...
- Tudo bem Ana. Quem está querendo conversar agora sou eu. Estou curioso para saber o que você tem a me dizer. Por favor, diga logo.
- Olha Adauto, é um assunto delicado, talvez seja melhor falar pessoalmente...
- Tudo bem, eu posso te ver agora.
- Agora???
- É. Você não pode?
- Acho que posso sim, você ainda mora na Vila Madalena, não é?
- Sim, moro.
- Então o que você acha de me encontrar no café da Livraria da Vila. Você conhece?
- Sim, é bem perto de casa.
- Meia hora?
- OK, estarei lá.
- Tchau....tchau....
- Espera Adauto! Você lembra de mim?
A pergunta ficou no ar. Adauto já havia desligado.


Adauto tomou o banho mais rápido da sua vida e voou para a Livraria. Sentou-se numa mesa ao lado de uma porta de vidro, de onde via claramente quem circulava entre as gôndolas. Detestava ser pego de surpresa.

Ele estava muito tenso, sorvendo um café com muito açúcar para poder acalmar, ensaiando alguns discursos, pensando cuidadosamente em tudo que iria falar, quando viu Ana vindo em sua direção, por entre livros infantis. Ela estava sorrindo, serenamente. Ele a reconheceu imediatamente. Ainda era uma mulher bonita. Ruiva ainda mas talvez com algum auxílio cosmético. Os olhos azuis estavam mais faiscantes do que há trinta e tantos anos. Ela contornou cuidadosamente a porta de vidro e chegou à sua mesa. Ele se levantou e a cumprimentou nervosamente, com um beijo tímido no rosto.

- Nossa, quanto tempo! Ele disse.
- Pois é Adauto. Tempo demais.
- Você está ótima. Sente-se.
- Por favor Adauto, não minta. Você é que está bem.
- É, tirando a calvície e a barriga não é?
- Isso é charme.
- Não, não é não. O fato é que a gente envelhece não é?
- É mas eu acho que a gente só vai melhorando com o tempo. Seria antinatural ter o rosto esticadinho, os seios duros, o cabelo com a cor original, na nossa idade, você não acha?
- É, disse Adauto sem pensar muito. Logo em seguida atacou com uma frase ensaiada:
- Tem visto alguém da nossa turma?
- Não. Não encontrei mais ninguém, com uma única exceção.
- Quem? Perguntou Adauto.
- O José Maurício, lembra?
- José Maurício??? Não me lembro.
- Vocês o chamavam de Zé Libelú, porque alguém inventou que ele era terrorista, o que ele nunca foi.
- O Zé?! Lógico que eu me lembro do Zé! Nós éramos parceirões. Eu gosto muito dele!
- Ele também gostava muito de você. Sempre se referia a você como um dos melhores amigos que ele teve. Ele achava que você tinha um grande caráter.
- Você teve bastante contato com ele então, Ana?
- Com certeza eu tive. Eu fui casada com ele por trinta anos.
O queixo de Adauto parecia despencar do rosto.
Aquele silêncio tão temido e evitado estava presente e incomodava mais e mais a cada segundo de permanência.
Finalmente, Ana tratou de exterminá-lo:
- O que foi Adauto? Parece que você ficou um pouco surpreso?!
- Na, na, não....É que eu não sabia disso. Eu encontrei o Zé algumas vezes nos últimos anos, por questões de trabalho. Ele trabalhou em várias emissoras de televisão, não é? Ele nunca me disse nada a seu respeito...
- Eu imagino porque Adauto. Mas é uma longa história.
Adauto pareceu não ouvir essa última frase e continuou falando automaticamente.
- Mas então.........mas então........
- Então o que?
- Diziam, naquela época, que você tinha sumido de vista porque estava namorando sério com alguém da turma. Então era com o Zé?!
- Sim, era ele mesmo, mas eu não sumi apenas por isso. Talvez o que você esteja querendo dizer nas entrelinhas é que eu sumi da SUA vida por causa disso, não é?
Adauto limitou-se a acenar com a cabeça, com a boca ainda escancaradamente aberta.
- Também não foi bem assim Adauto. É por isso que eu quero tanto falar com você. Tenho a obrigação de te contar e explicar algumas coisas, mesmo depois de tantos anos. Eu tenho quase certeza de que você vai ficar muito magoado comigo mas eu preciso falar e preciso de toda a sua atenção agora. Espero sinceramente que você esteja de coração aberto para ouvir o que eu tenho a te dizer.


Adauto acenou novamente com a cabeça, Ana sorveu um pequeno gole da água com gás de Adauto e começou a falar pausada e docemente, num esforço perceptível de tentar dissipar toda a tensão que pairava entre eles naquele longo instante. Absolutamente tudo o que Ana falou daquele momento em diante era totalmente inesperado, por mais que a imaginação de Adauto tivesse passeado tanto, fantasiado tanto sobre o que ela tinha a dizer.

Contou então a ele a história do breve relacionamento que tiveram, como se conta para um amigo, como se ele não a houvesse protagonizado. Ela tinha certeza de que ele não se lembrava dos detalhes e os detalhes faziam toda a diferença.

Para resumir, disse na lata, sem nenhum rodeio, que seria de se esperar nessas situações, que do breve casinho que tiveram Ana havia engravidado e dado à luz uma menina chamada Rita, hoje com 32 anos, por sua vez casada e mãe de um menino, João Vítor, de 5.

Adauto ficou lívido, branco como neve e Ana percebeu que ele estava prestes a ter um troço.

- Adauto, tudo bem com você?
Silêncio.
- Q...q...quer dizer que eu tenho uma filha e um neto? Disse com lágrimas nos olhos.
- Sim Adauto.
- Mas....mas....por que?

Adauto queria perguntar e não conseguiu, por que ela não havia dito antes, por que esperar 32 anos, por que só agora ? Ana entendeu as entrelinhas.

- Adauto, eu não te contei antes por vários motivos. Você provavelmente vai achar que não são motivos suficientes diante da importância do fato em si e vai me odiar. Aliás eu avisei que você iria me odiar, mas acontece que na época você me disse muitas vezes que nunca iria se casar, que tinha certeza de que seria solteiro o resto da vida, que achava que família e filhos só atrapalham a vida das pessoas porque desviam toda a atenção do que realmente é importante, etc, etc, lembra?
- Lembro.
- Nessa época eu era muito próxima do Zé. Ele era meu amigo querido. Quando eu disse a ele que estava grávida ele me deu todo o apoio, ficou próximo e ouviu todas as minhas lamúrias de mulher apaixonada, sem saber o que fazer da vida. Eu acabei me ligando muito a ele e o inevitável aconteceu. Namoramos e casamos e ele resolveu assumir a Rita como se fosse filha dele. Combinamos que você nunca saberia de nada. Eu nunca amei o Zé mas ele foi, ao mesmo tempo, o grande homem da minha vida, entende?
- Entendo. Disse Adauto com a cabeça abaixada, evitando contato visual.
- Ocorre que o Zé morreu há um ano e meio.

Nesse momento foi Ana quem engasgou e não conseguiu falar mais. Começou a chorar e percebeu que Adauto também chorava de soluçar. Segurou nas mãos dele e as afagou docemente. Quando conseguiu dominar o engasgo, continuou:

- O Zé era uma pessoa incrível sabe? Muitas vezes ele quis falar com você e eu não deixei. Então ele pelo menos me convenceu a contar a verdade para a Rita, desde criança. Ela sempre quis conhecer você e algumas vezes viu você de longe. Mas respeitou nossa decisão de não entrar em contato. Pelo menos até agora. Depois da morte do Zé, que aliás foi repentina, coração, sabe? Daí ela acabou me convencendo a falar com você. Ela está aqui, na porta da Livraria com o seu neto. Você quer conhece-los?

Adauto saiu do estado de choque em que estava imerso e seu rosto se iluminou. Sentiu algo que nunca havia sentido antes. Era como se seu coração estivesse se expandindo para além dos limites do peito. Não conseguia falar mais nada. Somente assentiu com a cabeça. Foram até a entrada da livraria e Adauto então viu uma moça linda, ruiva como a mãe, com olhos que ele conhecia bem do seu espelho. Ao lado, um garoto igualmente bonito. Ele não disse nada. Caminhou até a filha, ela lhe abriu os braços e ele a abraçou com força de muitos anos.


Adauto hoje encontra Rita e João Vitor praticamente todos os dias. Conversa longa e ternamente com a filha e brinca muito com o neto, que o adora. Já os levou para conhecer Dona Leocádia, Ana e toda a sua família, num domingo em que todos os lenços de papel do bairro seriam insuficientes para enxugar as lágrimas de todos.

Quanto a Adauto e Ana Beatriz, tornaram-se grandes amigos. Mas ambos, secretamente, não descartam retomar a paixão interrompida há tantos anos. Dona Leocádia continua rezando para isso todos os dias.