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sábado, 12 de junho de 2010

Autobiografia.

Em tempos de Copa do Mundo (que maravilha!), posto hoje um conto baseado em fatos reais e autobiográficos, alusivo ao tema.




O SEQUESTRO DO PONTA ESQUERDA



Esta história se baseia numa premissa inteiramente falsa. Pra começo de conversa, destaque-se que o seqüestrado em questão não era ponta esquerda de quatro costados. Quando muito, um meia esquerda improvisado na ponta, num time de muitos craques, posto que se assim não fosse, certamente não encontraria guarida naquela constelação de gênios. Em segundo lugar, não se pode também falar em seqüestro, sendo que nem resgate foi pedido pelo meliante. Além disso, a vítima não era uma pessoa de carne e osso mas sim um mero objeto e pequeno de caber em qualquer bolso, o que automaticamente desclassifica o delito de seqüestro para o de um mero furto, teoricamente menos grave. Apenas teoricamente, mesmo porque a teoria não contempla o valor da “res furtiva”, analisado por vieses subjetivos e passionais.

Isto posto, passa-se à análise do caso, não sem antes empreender uma viagem temporal ao longínquo mês de agosto de 1970. Pois é certo que nesse tempo, de agruras militares e torturas milenares, o menino Carlos Augusto, ou simplesmente Cacau, como lhe alcunharam os moleques daquela rua tranqüila e simpática da paulicéia, contando com incompletos 11 anos, sonhava apenas com a Copa do Mundo do México, recém terminada com um retumbante sucesso da seleção canarinho. As únicas imagens que lhe preenchiam a memória visual eram as dos 19 gols marcados nos seis jogos que a seleção brasileira vencera rumo ao tri, tanto que decorou as jogadas na mente e elas ficariam indelevelmente marcadas até o fim dos seus dias. Os sons que recordava e repetia sem cessar, em altos brados para desespero dos pais, eram aqueles criados pelo imortal Geraldo José de Almeida, com erres exagerados ao narrar os jogos: “QUE BOLA BOLA” ! “PORRRR MUITO POUCO, MUITO POUCO, POUCO MESMO” ! “OLHA LÁ,OLHA LÁ, OLHA LÁ, NO PLACAAARRRRRRRRR”!

Fato é que, por aquela época, uma conhecida indústria de brinquedos lançou um jogo de futebol de botão com a seleção tricampeã do mundo. Cacau, já apaixonado pelo jogo de botões, viu aquela reluzente equipe amarela transformar-se imediatamente em seu mais intenso sonho de consumo. Estudou, cortou grama, lavou o carro do pai, foi comprar pão, tratou a irmã caçula com carinho, comeu salada e fez promessa. Tudo para conseguir seu intento. E acabou conseguindo. Ganhou do pai, em reconhecimento tardio, num dia qualquer, sem que fosse aniversário, um pacote transparente com os sonhados onze “cracks” dentro. São os melhores presentes os inesperados. Aquele time de botão representava para ele seu melhor e definitivo brinquedo. O brinquedo de sua vida. Em segundo lugar, longe, muito longe, vinham o autorama, que lhe custou várias visitas aos avós, e o Forte Apache, naquela altura já com várias falhas nas paredes de madeira, índios e soldados carcomidos pelos incipientes dentinhos da irmã e cavalos pernetas.



Abriu sofregamente o pacote dilacerando o plástico da embalagem e conferiu, astro por astro, a escalação. Eram botões com a foto pretebranca dos jogadores. Lá estavam eles. Félix, o goleiro, com suas longas e espessas costeletas, baixo, magro e fraco tecnicamente, mas um goleiro necessário apesar de sua preferência recair em Ado ou Leão, os reservas. Não era um goleiro tipo “caixa de fósforo com pilha dentro”, como Cacau costumava confeccionar. Apenas uma chapinha de plástico com a foto colada e uma haste de metal atrás para movimentá-lo. Melhor partir logo para a linha. Brito, zagueiro, com a barba sempre mal feita. Inevitável perceber o quanto era chegado nuns goles. A expressão bovina denunciava, mas naquele tempo Cacau ainda não a reconheceria. Wilson Piazza, meio de campo do Cruzeiro daquela lendária safra, cuja estrela maior, Dirceu Lopes, sequer havia sido cogitado na convocação derradeira. Piazza agora era improvisado como zagueiro, coisa que nunca foi, cedendo à infinita criatividade daquela comissão técnica biônica e milica. Everaldo, lateral gaúcho/macho, precocemente falecido num acidente automobilístico após a Copa e Carlos Alberto, o “Capita”, lateral direito de larga qualidade, de Santos e Fluminenses, cujo gesto de levantar com as duas mãos a pequenina e extinta Jules Rimet era freqüentemente imitado por Cacau, usando o copo do liquidificador de sua mãe, imaginando o Azteca lotado, aplaudindo-o por horas a fio. Esse som da turba Cacau imitava perfeitamente, abrindo a boca e lançando ar sem nenhum som.

Defesa completa, partir para o meio de campo e ataque era uma verdadeira covardia. Era o time dos sonhos, considerado bem mais tarde como o maior time de todos os tempos. Clodoaldo, ou “Clodô”, valente médio volante, ou como se chama atualmente, “volante de contenção”, era um craque. Gérson, com sua calva formando um triângulo invertido no cucuruto, imitado em 2002 por Ronaldo Fenômeno (ninguém notou?), e seus passes de 40 metros nem se fale. Pelé, com seu cabelo tipo “americano 1”, dispensa qualquer comentário que acrescente algo aos compêndios já escritos e falados. Jairzinho, o “Furacão da Copa”, no cume de sua forma e de seu futebol. Doutor Tostão, antes da bolada no olho que o afastou dos campos, talvez o melhor complemento ao futebol do Rei, o queijo minas que colava à goiabada cascão e produzia o melhor “romeu e julieta” já visto. E finalmente Rivelino, inexplicavelmente sem bigode, o meia improvisado como ponta esquerda, móvel desta história, com sua indefensável “patada atômica” como se dizia na época. O time estava deliciosamente completo!


Cacau telefonou imediatamente para todos os amigos da rua e marcou um campeonato para o dia seguinte no Estádio Augusto Lima, o popular “Gutão”, sendo que Gutão era seu vizinho da frente e o Estádio propriamente dito era a mesa de jacarandá de Dona Lídia, mãe de Gutão, apenas utilizado em ocasiões especialíssimas, como finais de campeonato ou jogos de revanche. Era o “Maracanã” deles, mais por suas especificidades propícias ao futebol de mesa, assim como as largas medidas e a capacidade de deslize, do que pela disposição de Dona Lídia em ceder a sua centenária mesa de jantar. Na verdade, os meninos em mutirão enceravam a mesa após as partidas porque Dona Lídia não tinha a menor idéia de que ali eram realizadas disputadas porfias. Uma marca de dedo naquela mesa, que pertencera à sua bisavó portuguesa, significaria para Gutão um mês sem sobremesa, talvez dois sem televisão.
Reprimenda tão cruel merece um parágrafo a parte. Ficar sem televisão naquela época, para Cacau, Gutão e companhia bela, todos na casa dos 10, 11 anos, significava perder os grandes jogos de futebol, nos quais, num domingo ruim, se via em ação Pelés, Edús, Leões, Ademires da Guia, Rivelinos, Gersons, etc, etc, e ficar também sem “seguir” as novelas Pigmalião 70 e, principalmente Irmãos Coragem. Todos costumavam cantar “Irmãos, é preciso coragem...” e gostavam de João Coragem e de Jerônimo, às voltas com a prima Potira (assunto bacana para um garoto). Mas todos se identificavam mesmo com o personagem Duda, interpretado por Cláudio Marzo, que além de ser jogador do Flamengo na trama, desfrutava invariavelmente da companhia de Ritinha e de outras belas moças. Este último assunto, definitivamente, já os interessava naquela altura, tanto ou mais do que o futebol. Mal sabiam que iria interessá-los pela vida afora e quantas besteiras fariam, no futuro, em nome disso.


Fato é que o campeonato foi combinado convenientemente no horário em que Dona Lídia iria ao cabeleireiro e às compras. Na hora marcada estavam todos lá. Gutão, o dono do “campo”, com seu quase imbatível time do Santos, feito com capinhas de relógio pintadas a mão, Beto, com seu time misto de botões de casaco e outros jogadores “negociados” nas ruas do bairro, Juvandir, que também respondia pela alcunha de Vandinho, com seu reluzente Flamengo vendido em pacotes, um a um, nas bancas de jornal e Cacau, com sua seleção canarinho tinindo de nova.


Sorteios de grupos feitos, o Santos de Gutão ganhou do mistão do Beto por 1 a 0 e Cacau goleou o Flamengo de Vandinho por 2 a 0, gols de Pelé e Rivelino. Gutão e Cacau foram para a final e Cacau venceu por 2 a 1, gols de Jairzinho e novamente Rivelino, com um chute indefensável que bateu na trave e entrou, eleito o craque do torneio. Os placares eram baixos porque os jogos duravam apenas 5 por 5 minutos, fruto da paúra que os garotos tinham de que Dona Lídia esquecesse algo em casa e voltasse mais cedo, irrompendo na sala e pegando todos em flagrante. Terminados os jogos, todos guardaram seus botões rapidamente e foram para suas casas, a tempo ainda de assistir “Perdidos no Espaço” e de fazer a lição de casa.


Após o jantar em família, em que Cacau narrou entusiasmadamente ao pai todas as grandes jogadas que praticara naquela proveitosa tarde e engolida a última colherada do arroz doce, que odiava e a mãe insistia em fazer de sobremesa, voou para seu quarto para treinar chutes a gol com seu time recém campeão. Assim que abriu sua caixinha de botões algo lhe disse que faltava um. Procurou todos os botões amarelos e constatou com um arrepio na espinha que Rivelino não estava mais entre eles. Imediatamente telefonou para Gutão e o desespero em sua voz era evidente. Não, Rivelino não estava lá, perdido em algum canto, muito embora Cacau tivesse obrigado Gutão a procurá-lo pelo menos umas dez vezes. Então a resposta era óbvia: irritado com a retumbante vitória de Cacau, alguém surrupiara a revelação do torneio, justo ele, por pura e terrível vingança, ou para evitar novas derrotas no futuro. Os suspeitos eram apenas dois, já que Cacau confiava cegamente em Gutão: Vandinho ou Beto. Ou os dois, em conluio criminoso!

Durante toda a manhã seguinte, na escola, Cacau pensou em planos de vingança e recuperação do precioso jogador. Cogitou esfaquear os amigos com um abridor de cartas que ganhara de uma tia, pagar resgate com figurinhas carimbadas, chicletes Adams e outros gêneros de primeira necessidade, implorar a devolução do botão ou até mesmo surrupiá-lo de volta, mas foi o valoroso companheiro Gutão quem lhe sugeriu a solução definitiva. Argumentou que não poderiam criar um clima ruim com Vandinho e Beto, caso contrário não poderiam mais convidá-los para futuros campeonatos e não teriam quem golear, já que os dois jogavam muito menos do que eles. Além disso, o pai de Beto era alto funcionário da Kibon e seus aniversários eram concorridíssimos, com farta distribuição de sorvetes e chocolates. Perder essas festas seria o cúmulo da exclusão social e gastronômica. Isso era impossível suportar. Assim sendo, tinham que pensar em uma saída mais honrosa e menos traumática. Gutão revelou a Cacau que dois dias antes estivera na sessão de brinquedos do supermercado próximo à casa deles e viu vários pacotes de botões já abertos, com jogadores faltando. Inclusive o da seleção brasileira!


De posse de tão valiosa informação, Cacau não pensou nem meia vez. Chegou em casa, inventou uma desculpa para a mãe e voou para o super, enquanto Gutão já se incumbia de telefonar para os dois suspeitos, marcando o campeonato daquela tarde. Mal podiam esperar para ver a cara dos dois quando Cacau aparecesse com um Rivelino novo, com cara de desentendido, sem passar recibo do furto ocorrido na tarde anterior. No supermercado o coração de Cacau dobrara os batimentos. A primeira coisa que viu na sessão de brinquedos foi um pacote de botões da seleção brasileira já aberto, tal qual Gutão lhe afiançara. Melhor do que isso, o primeiro jogador visto no pacote foi um Rivelinão, sorrindo para ele e pedindo: “me leva, me leva”! Numa fração de segundo o botão já estava no bolso de sua camisa e Cacau voltou para casa feliz, sem nenhuma migalha de arrependimento. Os pacotes já haviam sido abertos e devidamente furtados. Não se sentia criminoso. No máximo tratava-se apenas da continuação de um delito iniciado por outrem. Se a polícia descobrisse o autor principal a ele seria creditado também o furto do Rivelino. Além disso tinha sido escandalosamente roubado na tarde anterior e aquilo que acabara de praticar era apenas uma mera e justa reposição.


O campeonato daquela tarde foi arrasadoramente fácil. Abatidos moralmente, Vandinho e Beto sofreram goleadas impiedosas. O Rivelino novo de Cacau fez até gol olímpico! Como se dizia na gíria da época: deitou e rolou! Os dois supostos larápios não acreditavam em seus olhos! Como Rivelino ressurgira? Era a concretização de seus piores pesadelos.


Cacau e Gutão trocaram olhares cúmplices e riram muito.



A noite, em casa, Cacau estava exultante, ainda comemorando as novas vitórias e estava treinando em seu quarto quando o pai chegou do trabalho. Desavisadamente disse ao pai que recuperara o seqüestrado. O pai quis saber como e ele orgulhosamente narrou os detalhes da aventura certo de que o pai admiraria a sua esperteza. O efeito foi dramaticamente oposto. Em acesso de fúria o pai puxou suas orelhas com fé, bradou códigos de honra da família, vociferou que nunca pegara nada que não lhe pertencia na vida e ordenou que o pobre Rivelino teria de ser devolvido ao pacote de origem na manhã seguinte, assim que o supermercado abrisse as portas.


Importante salientar que aqueles eram tempos em que os filhos sequer ousavam argumentar com os pais, quanto mais desobedecer uma ordem tão clara e definitiva. Fato é que às 8 e meia da manhã do dia seguinte Cacau estava na porta do supermercado, com o craque no bolso, esperando abrir as portas. Foi infinitamente mais difícil recolocar o botão no pacote do que retirá-lo. Primeiro porque sabia que nunca mais recuperaria o valioso artefato e que seu time permaneceria para sempre incompleto. Segundo porque só agora lhe ocorria a gravidade do ato. Só então temeu ser pego em flagrante delito. Como explicar que estava devolvendo o botão? Ninguém acreditaria. Rodeou o pacote aberto cinco, seis vezes e só recolocou o botão quando teve certeza absoluta de que nenhum olhar suspeito o espreitava. Saiu em desabalada carreira de volta a casa, chorando muito no caminho. Uma mistura de vergonha e sentimento de derrota.


O fato que importa é que a lição foi aprendida. Pelo resto de sua vida Cacau manteria guardado a sete chaves o time de botão incompleto como uma prova contundente do amor paterno. Ah, e apesar de convidado, nunca aceitou um emprego em Brasília. .