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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Escrever um conto novo....

é sempre um desasfio imenso. Este é da novíssima safra. Minha modesta versão, talvez, à clássica estória da galinha dos ovos de ouro!






AS ESTÓRIAS E DESESTÓRIAS DE UM CACÓFATO


Machadão acordou meio-dia. Espreguiçou, coçou o saco demoradamente e fez café de coador. Sentou no colchão que explodia espuma pelos buracos e pensou: “Pôrra, que noitada!” Na noite anterior fumou um beck, tomou muita cachaça no boteco do Miltão, jogou snúqui, bateu pandeiro e até brigou, mas não se lembrava com quem. Um estranho silêncio invadia o Morro do Piolho naquela ex-manhã. O sol de dezembro esquentava o barraco até transformá-lo num micro-ondas gigante. Passou água na cara e foi prá rua, de calção, havaianas e camiseta no ombro. Apesar de ser uma figura estranha, do alto de seus 1,86 o sarará calvo de 32 anos de idade impunha respeito no morro. Era amigo da malandragem, dos donos do pedaço. Foi descendo e acenando: “Fala cumpádi”.... “Diz aí maluco”...”Tudo na regularidade?”....o Capão Redondo inteiro era o seu território.

Com as sobras dos trocados da última venda de crack pegou um ônibus para a Zona Oeste. O objetivo era zanzar, circular até vislumbrar a oportunidade de fazer um troco.

Seu nome era um cacófato. Décio Machado. Quando pequeno os moleques do morro gritavam em coro quando ele passava: “E desce o machado”. Ele odiava isso. Reclamava com a mãe, quando ela estava sóbria. Quando não estava só tomava porrada. Perguntava porque não tinha o nome do pai e ela respondia: “eu nem sei quem é seu pai seu bostinha”. Começou com pequenos furtos e logo já estava com o seu primeiro trezoitão de número raspado nas mãos. Matou três até os 13 anos. Em alusão às piadas com seu nome carregava uma machadinha no calção e vez ou outra decepava algumas partes de suas vítimas. Descia o machado. Na Febem virou Machadinho. Quando cresceu virou Machadão.

Desceu do ônibus na Avenida Rebouças, três da tarde. O calor estava um inferno e o céu começava a escurecer, o que garantiria o ibope do Datena no fim da tarde. Desceu a avenida a pé, observando os carros. Pajero é fusca, pensou! Não se conformava com a quantidade de carros importados na zona rica da cidade. No farol com a Estados Unidos o carrão preto parou com o vidro aberto, numa distração imperdoável do motorista. Machadão bateu o olho e o rolex dourado tiniu, sorriu pra ele. Rápido encostou, mostrou a automática escondida no calção e já anunciou: “Perdeu tio! Passa o rolex”. Vazou rapidinho com o relógio no bolso e sumiu numa travessa.

Quando tinha 16 a mãe morreu assassinada por um namorado. Ele estava na febem e ficou sabendo dez meses depois. Sentiu alívio. Saiu e caiu na rua. Morou na Sé, na entrada do metrô e tomou muito banho no laguinho da praça, piscina particular dos garotos. Cheirou muita cola e roubou muito velhinho. Depois dos 18 caiu num assalto a uma farmácia. Puxou 4 anos de cana. Saiu, matou dois. Puxou mais 8 anos e saiu em condicional.

Na travessa tranqüila sentiu-se seguro para examinar o rolex com seus olhos bem treinados. “Essa merda é de verdade”, pensou. “Garanti o meu natal e o dos moleques”, foi seu pensamento imediatamente seguinte. Oferecido nos canais certos a máquina iria render 700, 800 paus. Quem sabe até milão.


Machadão tinha dois filhos. Um com 14 e outro com 12, ambos forjados em visitas íntimas e frutos de seu caso de quatro anos com Jéssicah, com agá no fim, como insistia em enfatizar. Era usuária de crack e vivia fora do ar. Os garotos foram criados pelo vento. O mais velho já morava na fundação casa, mesmo endereço onde o pai morou e que só mudou de nome. O caçula segurava a onda até onde podia, sabe-se lá como. Numa estranha compulsão em premiar a honestidade Machadão pensou que seria o único merecedor de um presente de natal. Talvez um PS3 de origem obscura.

A noite, de volta ao barraco, segurou o rolex com olhos de quem não quer largar. Fuçou, mexeu e resolveu que iria curtir o produto por uns dias. Apareceu no boteco do Miltão com ele no pulso. Sucesso. Catou umas mina do morro com ele. Mais sucesso. O barato era de ouro e ouro faz sucesso até com madame. Alguns dias depois, antes de dormir, começou a fuçar nos botões. Começou pelo mostrador de horas e minutos. Um relógio analógico de ouro não se vê toda hora. Puxou a tarraxa mais para cima e começou a brincar com o mostrador dos dias. Era 18 de dezembro e sem nenhum motivo ele voltou o mostrador para o dia 13, data em que roubou o relógio. Imediatamente sentiu uma tontura estranha, um barulho de vento nos ouvidos e uma luz branca muito forte o obrigou a cerrar os olhos com força. Quando os reabriu estava sentado no colchão de seu barraco e a luz do dia invadiu o seu olhar. De repente estava com o mesmo calção do dia do roubo e com o conhecido café nas mãos. O relógio havia desaparecido de suas mãos. “Puta que pariu”!!! gritou já pulando do colchão. “Que pôrra é essa”! Saiu de casa atordoado. Perguntou pro vizinho: “que dia é hoje seu Jaime?”. “13 de dezembro, natal tá chegando né?!” respondeu o velho. Voltou pra casa pensando “cacete, esse relógio é o que”?! Voou pra zona oeste. Avenida Rebouças. Fez uma horinha e de repente olha o carrão preto lá de novo. Olha o rolex no pulso do otário lá de novo. Repetiu a ação e levou o relógio outra vez.

Nos dias que se seguiram, deixou o relógio ali, sobre uma mesinha. De vez em quando olhava meio ressabiado para o objeto, pensando nas possibilidades que ele poderia proporcionar. Em algumas noites saiu com ele no pulso outra vez e comeu novamente todas as mocinhas que já tinha comido antes por causa dele. Isso ele não recusaria. Viveu mais ou menos tudo o que tinha vivido até o dia 18, com a vantagem que agora sabia tudo o que iria acontecer. Depois do dia 18 era tudo incógnita. Um avião poderia cair sobre o seu barraco, ele poderia ser atropelado, preso....sentiu medo, o que não era comum e não gostava de sentir. Na verdade, após o dia 18 ele correria todos os riscos que sempre correu na vida. Mas agora era diferente. Ele já tinha sentido o gosto confortável de saber antecipadamente tudo o que iria acontecer. Parecia que agora os riscos eram ainda mais arriscados. Ficou tentado a voltar o mostrador dos dias novamente, mas pensou que não poderia viver para sempre naquele intervalo entre os dias 13 e 18 de dezembro, talvez só mais algumas vezes. Lamentou que o relógio não tivesse mostrador dos meses e dos anos. Voltaria para a sua infância provavelmente. Faria tantas coisas de forma diferente...mesmo sem saber exatamente o que.

Por via das dúvidas, voltou o relógio outras vezes até o dia 13. Ficou vivendo naquele intervalo durante uns dois meses corridos, mas mudava as suas atitudes, fazia coisas diferentes sem saber que estava mudando a seqüência dos fatos de forma perigosa. Por exemplo, num dos dias 13 de dezembro chegou atrasado na Rebouças. O farol onde roubara o rolex estava abrindo e o carrão preto passando. Teve que correr até o semáforo seguinte o qual, para a sua sorte, fechou. Para a sua sorte o trânsito estava lento como sempre. Alcançou o carro e levou o rolex. Mas foi por pouco. A partir daí voltaria o relógio apenas para o dia 14. Muito mais prudente e inteligente.

Fez coisas que não havia feito antes. Exemplo: nos dias que se seguiram ao dia 13 evitou contato com Stephanie, uma mulata tinhosa, cheirosa e gostosa, namorada do dono do morro e que dava o maior mole prá ele. Na verdade ele sempre fugira dela. Sabia o quanto era perigoso. Entretanto, em uma de suas voltas ao passado, resolveu que era hora de encarar, porque se sentia mais poderoso. Esse poder abria o seu apetite. Levou a moça pro barraco e viveu uma noite de sonho. Voltou a essa noite muitas vezes.

Por volta de um dos dias 16 de dezembro passou em frente a uma loja e viu um Playstation 3 na vitrine, igualzinho ao que iria comprar para o seu mais novo. Como não poderia abrir mão do relógio voltou ao dia 16 inúmeras vezes, estudou todos os movimentos da vizinhança, certificou-se de que não havia polícia por perto, até que entrou na loja, anunciou o assalto, quebrou a câmera, levou o aparelho e ainda esvaziou o caixa de quebra. O presente do moleque estaria garantido de qualquer maneira.

Com o dinheiro do roubo comprou uma arma melhor e maior, fácil de ser encontrada no morro. Arquitetou assaltos mais audaciosos porque tinha a vantagem de saber tudo de antemão, de observar, de saber por onde escapar. Supermercados, postos de gasolina, farmácias, não havia obstáculos. Chegou até mesmo a entrar muitas vezes em restaurante fino, muito bem vestido, comer de tudo, beber de tudo e na hora da conta escapar para o dia anterior com o bucho cheio, que ao voltar estava vazio de novo. Mas o prazer de ter experimentado aquela comida de rico, esse ficava.

Foi ao Pacaembú ver seu time jogar, deu rolê com carro importado de test-drive, pegou resultado de megasena, voltou, jogou e ganhou, levou Stephanie a motel caro, foram dias de glória. Parou de roubar porque descobriu que não precisava pagar por mais nada e isso é tudo o que qualquer pessoa pode almejar. Nesse intervalo de cinco dias, que durou quase noventa, viveu como um rei. Almoçava e jantava nos jardins, morava em hotel 5 estrelas, usava roupas caras e desfilava de bacana no morro. O chato é que não podia reter nenhum objeto, comprado ou roubado, tinha que fazer uso deles apenas até mexer no relógio novamente. Sempre que voltava no tempo o dinheiro e os objetos desapareciam e ele tinha que fazer tudo de novo. E tinha que ter método, agir com cautela, não dar nenhum passo em falso. Essa rotina foi cansando. Ele já estava estressado com tanto trabalho e tensão. Além disso havia sempre o receio de que alguém lhe roubasse o relógio reluzente. Seus vizinhos não eram de confiança, pensou, como se fosse pessoa de bem.

Num certo 18 de dezembro resolveu fazer novas experiências, ousar. Com o relógio nas mãos pensou muito e se perguntou: “se essa pôrra faz o tempo voltar deve adiantar também né?!” Hesitou alguns instantes e resolveu adiantar o marcador para o dia 25. Queria saber como seria o seu Natal. Certamente ótimo, com tanta fartura. Quem sabe até na praia? No estrangeiro? Com Stephanie? Ele sabia que a partir do momento em que pressionasse a coroa de volta e ouvisse o clique não haveria mais volta. Hesitou mais um pouco e pensou: foda-se! Clic!

A mesma tonteira, o mesmo barulho de vento e de repente uma sensação de leveza, que nunca sentira antes. Abriu os olhos. Estava pairando perto do teto. “Que merda é essa?” pensou. Ouviu vozes. Olhou para baixo e viu um caixão com o seu corpo dentro. “Caraaaalho Maluco”!!!, coçou os olhos ou o que imaginava que fossem olhos. Era ele mesmo. Ao lado do caixão apenas duas pessoas no seu velório. Miltão, o dono do boteco e seu Jaime, o vizinho. No pulso do seu cadáver lá estava o rolex de ouro. Por algum descuido ninguém percebeu que era legítimo ou ninguém teve coragem de surrupiar a joia do defunto.

De repente foi descendo do teto, tentou pegar o relógio. Não conseguiu. Gritou com força: “Seu Jaime, atrasa o relógio pro dia quatorzeeee”. Nada. O velho tá surdo?! “Miltão, me ajuda peloamordedeus”! Nada. Ainda ouviu seu Jaime comentando com Miltão: “O Machadão não deveria ter andado logo com a mulher do Paraíba”. E antes do que estava por vir teve tempo de pensar que se o relógio marcasse os anos voltaria para a sua infância. Faria tanta coisa diferente...mesmo sem saber exatamente o que!