O AUTO DO AUTO
- “Isso eu sei fazer”, era a sua
frase predileta.
Mais observador que uma coruja,
desde pequeno ele aprendia a fazer coisas complicadas, que exigiam notável
habilidade manual, apenas olhando os outros fazendo.
Nunca comprou casinha para os
seus cães. Construiu todas desde os 8 anos de idade.
Abriu despertadores, apenas para
saber o que continham.
Se gostasse de um brinquedo,
fazia um igual. Ou quase.
Tinha evidentes habilidades em
marcenaria, encanamento, pintura, física nuclear, raspagem de paredes,
machetaria, mosaico, acupuntura, mecatrônica, bordado e chilreado. Sem contar
centenas de outras.
Aos 15 comprou uma maquininha de
barbeiro e aprendeu a cortar seu próprio cabelo.
Odiava depender de quem quer que
fosse. Era um autodidata, um autossuficiente de carteirinha e gostava de se
apresentar como um Especialista em Generalidades. Até
de pagar por serviços tinha ogeriza. – “Se eu posso aprender a fazer ou
consertar, vou pagar por que?” – dizia.
Tocava cavaquinho, violão e
pandeiro sem nunca ter freqüentado uma aula de música. Aprendeu inglês indo ao
cinema e evitando as legendas.
Sua extensa plêiade de
habilidades fizeram com que se desse bem na vida. Principalmente por ser um
profissional eclético, um executor geral, um “topatudopordinheiro”. Se não
sabia ia procurar aprender.
Seu santo de devoção era o São
Google.
Era um vizinho boa praça, meio
que “faztudo” do prédio. Daqueles que consertam torneiras, instalam chuveiros e
computadores para senhoras aposentadas entrarem no facebook.
Conversava com muitas mulheres,
longamente. O fato é que elas nunca estavam presentes na conversa. Inventava
longos papos e falava animadamente com pessoas fictícias, em situações mais
fictícias ainda. Até na rua falava sozinho.
Quando precisava falar com pessoas
reais, travava.
Teve algumas poucas namoradas que
logo o abandonaram em razão de sua introspecção. – “Ele vive num mundinho
fechado” é o que diziam, sem compreender a vastidão de seu universo interior.
Gostava de não depender de mulher
nenhuma e se vangloriava disso. Se nunca dependeu da mãe, a não ser para
sobreviver aos primeiros meses, não iria depender de nenhuma outra mais.
- “Você não sente falta de estar
com uma mulher, cara???” perguntavam os amigos. A resposta era sempre um sonoro
“não”! Desenvolveu técnicas de masturbação incrivelmente variadas e
prazeirosas. Pensou até em escrever um manual, um “Kama Sutra for Singles”.
Suas experiências
erótico/sensoriais foram a porta de entrada para o universo da medicina e da
odontologia. Passou a ser um voraz leitor de bulas. Dava conselhos na área. Só
ia ao médico ou ao dentista em situações desesperadoras. Aprendeu a obturar as
próprias cáries, cauterizar as próprias verrugas e recolocar no lugar seus
dedos destroncados. No varejo, resolvia tudo sozinho.
Foi descoberto pelo cheiro, em
seu exíguo apartamento, uma semana após sua morte. Estava envolto em uma poça
de sangue seco e com uma extensa incisão na barriga, em avançado estado de
decomposição. Na mão direita um estilete.
Morreu de hemorragia abdominal
tentando, dizem, extirpar o próprio apêndice.