DECRÉPITO
- “Foi esse velhinho decrépito
aí”!
A frase estourou como
nitroglicerina nos meus ouvidos. Ela só podia estar se referindo a mim! Eu era
o único cinqüentão no ambiente e estava parado diante dela, em frente ao
balcão.
Me espantou, em primeiro lugar,
que uma mulher tão jovem soubesse o significado da palavra decrépito, que
segundo Houaiss é usado, esquálido, caduco!
Em seguida o espanto se
concentrou não nas palavras, mas na forma como foram pronunciadas, ainda que as
tenham sido pronunciadas baixo, quase sussurradas ao balconista ao lado, na
esperança de que eu não as ouvisse, já que era um velhinho decrépito. O olhar
crispado e o contorno da boca não deixavam dúvidas quanto ao ódio
injustificado. E eu só havia reclamado de uma diferença no troco, em meu
desfavor, educadamente.
Freqüentei aquela espelunca com
nome de estabelecimento sério algumas vezes. Era na esquina de casa e eu
passava sempre por ali com a sede a mil, sonhando com uma coca zero e um copo
com gelo que, além da água, mata minha sede. Mas mata com mais prazer.
OK, aos cinqüenta e três e cabelo
cinza eu já havia sido alvo da complacência ou da impaciência humana com as
pessoas mais velhas. Por duas vezes já haviam me oferecido o banco azul do
metrô, as quais gentilmente recusei, sem me ofender. Mas aquela era a primeira
vez que eu experimentava alguém me tratar de forma vil apenas por eu ser mais
velho. Era a primeira vez que eu sentia o desprezo nos olhos de alguém por
nenhum outro motivo que não fosse a minha data de nascimento antiga.
Encostei no balcão para assimilar
o golpe, como um pugilista procura as cordas após um cruzado de direita no
queixo.
Puxei pela memória alguns
momentos de impaciência que tive com parentes mais velhos, os quais tentei
disfarçar, por respeito ou amor. Não, eu nunca havia sido tão desrespeitoso
assim.
Talvez a meia idade seja a idade
do espanto, de se descobrir decrépito quando a mente ainda pensa que se é um
jovenzinho, doce delírio apenas interrompido pela próxima visita ao espelho.
Por isso talvez o choque. Fui acordado do doce delírio com um cruzado de
direita no queixo.
Mas não denunciei o golpe.
Postura madura, fruto da experiência? Talvez.
Meu primeiro ímpeto foi o de
retrucar, armar um barraco. Sim porque passado o espanto vem a indignação. Mas
não. Preferi adotar a tática do orgulho, da interessante tarefa de minar a
paciência do agressor. Disse pausadamente: “acho que vou tomar outra coca
zero”. Servido o refri continuei: “e com mais gelo no copo porque este
evidentemente já derreteu”! Desta vez meu tom de voz era de comando. A simpatia
já havia se perdido no balcão. Paguei com uma nota de cinqüenta. O troco veio
errado novamente, desta vez a mais. Não devolvi. A moça a essa altura estava
com um olhar de interrogação: “será que ele ouviu”? Sendo assim me tratou com
mais respeito, mas com a mesma indiferença dedicada ao homem invisível.
Saí da espelunca para nunca mais
voltar mas deixei um bilhete para ela escrito no guardanapo:
“Querida, fico muito feliz que a
única reclamação que você tenha de mim se refira à minha idade. Se este é meu
único defeito sou um homem realizado. Depois me passe o endereço da fonte da
juventude, já que você não pretende envelhecer. Suponho que saiba como. O que
você não sabe é fazer contas, aptidão imprescindível para a sua função.
Freqüente as aulas de matemática com mais afinco. Do seu...decrépito”.