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domingo, 25 de novembro de 2012

Conto novo!


DECRÉPITO

 

 

- “Foi esse velhinho decrépito aí”!

A frase estourou como nitroglicerina nos meus ouvidos. Ela só podia estar se referindo a mim! Eu era o único cinqüentão no ambiente e estava parado diante dela, em frente ao balcão.

Me espantou, em primeiro lugar, que uma mulher tão jovem soubesse o significado da palavra decrépito, que segundo Houaiss é usado, esquálido, caduco!

Em seguida o espanto se concentrou não nas palavras, mas na forma como foram pronunciadas, ainda que as tenham sido pronunciadas baixo, quase sussurradas ao balconista ao lado, na esperança de que eu não as ouvisse, já que era um velhinho decrépito. O olhar crispado e o contorno da boca não deixavam dúvidas quanto ao ódio injustificado. E eu só havia reclamado de uma diferença no troco, em meu desfavor, educadamente.

Freqüentei aquela espelunca com nome de estabelecimento sério algumas vezes. Era na esquina de casa e eu passava sempre por ali com a sede a mil, sonhando com uma coca zero e um copo com gelo que, além da água, mata minha sede. Mas mata com mais prazer.

OK, aos cinqüenta e três e cabelo cinza eu já havia sido alvo da complacência ou da impaciência humana com as pessoas mais velhas. Por duas vezes já haviam me oferecido o banco azul do metrô, as quais gentilmente recusei, sem me ofender. Mas aquela era a primeira vez que eu experimentava alguém me tratar de forma vil apenas por eu ser mais velho. Era a primeira vez que eu sentia o desprezo nos olhos de alguém por nenhum outro motivo que não fosse a minha data de nascimento antiga.

Encostei no balcão para assimilar o golpe, como um pugilista procura as cordas após um cruzado de direita no queixo.

Puxei pela memória alguns momentos de impaciência que tive com parentes mais velhos, os quais tentei disfarçar, por respeito ou amor. Não, eu nunca havia sido tão desrespeitoso assim.

Talvez a meia idade seja a idade do espanto, de se descobrir decrépito quando a mente ainda pensa que se é um jovenzinho, doce delírio apenas interrompido pela próxima visita ao espelho. Por isso talvez o choque. Fui acordado do doce delírio com um cruzado de direita no queixo.

Mas não denunciei o golpe. Postura madura, fruto da experiência? Talvez.

Meu primeiro ímpeto foi o de retrucar, armar um barraco. Sim porque passado o espanto vem a indignação. Mas não. Preferi adotar a tática do orgulho, da interessante tarefa de minar a paciência do agressor. Disse pausadamente: “acho que vou tomar outra coca zero”. Servido o refri continuei: “e com mais gelo no copo porque este evidentemente já derreteu”! Desta vez meu tom de voz era de comando. A simpatia já havia se perdido no balcão. Paguei com uma nota de cinqüenta. O troco veio errado novamente, desta vez a mais. Não devolvi. A moça a essa altura estava com um olhar de interrogação: “será que ele ouviu”? Sendo assim me tratou com mais respeito, mas com a mesma indiferença dedicada ao homem invisível.

Saí da espelunca para nunca mais voltar mas deixei um bilhete para ela escrito no guardanapo:

“Querida, fico muito feliz que a única reclamação que você tenha de mim se refira à minha idade. Se este é meu único defeito sou um homem realizado. Depois me passe o endereço da fonte da juventude, já que você não pretende envelhecer. Suponho que saiba como. O que você não sabe é fazer contas, aptidão imprescindível para a sua função. Freqüente as aulas de matemática com mais afinco. Do seu...decrépito”.