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sábado, 15 de maio de 2010

Conto novo.

Bom dia, ou será boa tarde, meus amigos blogueanos. Após uma gripe avassaladora e dias e dias de vitamina C e cama volto aqui para postar um conto da minha nova safra.


AMANDINHO E DAYSINHA




Amândio, com acento circunflexo, era taxista com ponto no bairro da Cachoeirinha há muitos anos, assim como foi seu pai. Porém, seu pai tinha sido “chofer de praça”. Era um pouco diferente. Quando não estava no ponto fazia ponto no bar do seu Juca, português de Leiria. Era um botequinho apertado, com mesas de metal branco e candidato “hors concours” ao prêmio de banheiro mais sujo de São Paulo, se o prêmio existisse.


Tendo 1,65 de altura, Amândio virou Amandinho. Já entrava nos seus 38 anos, ainda solteiríssimo e com os cabelos rareando rapidamente. Alguns no bar do Juca até olhavam desconfiados para Amandinho e eram comuns as cutucadas de cotovelo quando ele entrava pedindo invariavelmente uma Caracu e uma coxinha. Depois sentava com algum amigo e iniciava uma longa tarde de dominó. Não que não trabalhasse. Trabalhava o suficiente. Acordava bem cedo, tomava um café preto e tirava o Santanão branco da garagem. Ia direto para o ponto, distante duas quadras e por ali ficava esperando uma corrida. Às vezes pegava uma para o centro, ou para bairros vizinhos, Casa Verde, Freguesia. Almoçava onde Deus queria e no meio da tarde já estava no Juca. Enrolava até a noitinha e ia para casa, sobrado herdado dos falecidos pais, ver o Jornal Nacional. Depois uma sopinha, algum filme do Chuck Norris ou do Steven Seagal dublado e cama. Esse era o seu ritual diário.


Ferreira e Tinguá, dois assíduos freqüentadores do Juca, viviam fazendo apostas: Amandinho é ou não é viado?! Ferreira jurava que sim. Tinguá dizia já te-lo visto na zona do bairro mais de uma vez. Outras vezes Amandinho teria sido visto com algumas mulheres. Mas eram do tipo de mulher com quem ninguém quer ser visto sob pena de ter a sua reputação arrasada. Se Amandinho realmente gostasse de mulher, no mínimo não entendia nada do assunto. Alguns já o tinham apelidado de “Shrek, o domador de dragões”. Até seu Juca entrava na aposta e foi o próprio, com seu sotaque carregado, quem alertou Amandinho um dia. – “Olha seu Amandio, eu não queria falar mas o pessoal anda a desconfiaire do senhor”. “Como assim ô Juca?”. “Andam a dizeire que o Sr. não se casa porque não gosta da fruta, ou que no mínimo precisa usaire óculos porque só vive a andar com mucréias”. Amandinho não dava muita importância a isso. Quando muito, sentava-se à mesa do bar e declarava a quem quisesse ouvir a sua já famosa teoria:

“Homem que quer progredir na vida, ganhar dinheiro de verdade, tem que casar com mulher feia, chata, tímida e carinhosa! Explico: Se o cara casa com uma lindona e gostosona, vai querer ir pra casa cedo todo dia, ou para desfrutar sua esposinha, ou por preocupação. Ah, a preocupação meus amigos. Essa acaba com o sujeito. Ele anda na rua com a mulher e todo mundo olha. Fica assim da gavião sempre sobrevoando, sempre com mil gentilezazinhas para a mulher dele. Ele tem a exata sensação que quando passa com ela todo mundo pensa: o que esta mulher está fazendo com um babaca desses? Essa preocupação desvia o foco da pessoa, entendem? O cara vai pra casa cedo, não trabalha direito, telefona no celular dela de dez em dez minutos e ela não atende nunca, fica pensando o dia todo no que a mulher dele estará fazendo, acaba fazendo cagada no trabalho e é demitido. Vive pulando de emprego em emprego, só se fode na vida, percebem? Mas se ele casar com uma mulher feia e chata, não vai ter ninguém querendo ser sócio dele. Ele pode ficar despreocupado. Aí ele fica sem a menor vontade de chegar em casa cedo porque a baranga é uma pentelha. Com esse tantão de tempo sobrando o cara acaba trabalhando mais, fazendo serão, ganhando mais, o patrão dele gosta, ele acaba progredindo na firma, um dia, vai ver, já é sócio, ganhando um dinheirão! Um exemplo é o Pedrinho. Já é gerente lá na oficina. Olha a mulher dele! Compreenderam? No meu caso eu poderia trocar o Santanão, ir prum ponto melhorzinho, trabalhar dia e noite e enricar. Por isso eu não casei ainda. Tô procurando uma mulher assim”.


Sempre tinha um que perguntava: “Tá Amandinho, a parte do feia e chata eu já entendi, mas porque tímida e carinhosa?”

“É só pensar um pouco: tímida porque ela vai querer sempre transar com a luz apagada e você pode até imaginar que ela é a Juliana Paes, a Xuxa, sei lá, ao gosto do freguês. Não perde a vontade olhando pra infeliz, compreendeu? Carinhosa porque é bom né?! Na hora que a luz apaga é final de campeonato. Daí eu me garanto!!!”


Amandinho defendia essa teoria absurda com tamanha paixão que acabava convencendo o coro dos desconfiados. Não que ele fosse algum galã da Globo mas isso explicava porque ele só andava, ainda que raramente, com mulheres que poderiam ser contratadas como atrizes do trem fantasma do Playcenter.


Corte rápido. Dayse era uma mulata de vinte e dois anos capaz de fazer o Seu Juca devolver troco antes do sujeito pagar a conta. Desfilava de destaque na Unidos do Peruche. Morava perto do boteco e sempre dava uma passadinha lá antes de chegar em casa para comprar um chicletinho, balinhas ou outras daquelas guloseimazinhas que as mulheres adoram ter na bolsa e que juntam formigas. Invariavelmente ia com calças brancas (tinha coleção) apertadas ao ponto de deixar entrever marcas de vacinas que pegaram. Calça branca é uma coisa cruel. É gostosa até no varal. O fato é que, do momento em que Dayse entrava no boteco até quando saía e já ia a distância razoável, todos calavam. Nem respiravam. Os entreolhares diziam tudo. Seu Juca se desdobrava, tentava agradar a Deusa, comentava a meteorologia, oferecia biscoitos de polvilho, guaraná, perguntava detalhes da novela, fazia de tudo enfim para manter Dayse dentro do bar o máximo de tempo possível. E Daysinha, como gostava de ser chamada, era tão gostosa que mesmo depois que já havia saído há tempos do bar ninguém comentava absolutamente nada. Não era necessário. Todos concordavam que ela era a garota mais incrível do bairro. Quiçá da Zona Norte. Apenas de vez em quando, um ou outro freqüentador suspirava longamente, ou limitava-se a dizer: “é...”, ou algum muxoxo parecido.



Mas e não é que, por alguma dessas razões que só às almas femininas é dado conhecer, Daysinha andava lançando uns olhares compridos na direção de Amandinho?! Era algo impossível de se pensar mas estava ficando muito evidente. Inicialmente alguns começaram a perceber que todas as vezes em que Amandinho estava no bar, invariavelmente olhando para a tv ou folheando com o olhar distante alguma revista “O Cruzeiro” de 1963, Daysinha demorava-se mais, pedia um lanche ou um guaraná, coisa que nunca fazia. Além disso ela falava perceptivelmente mais alto, talvez na tentativa de chamar a atenção do distraído do Amandinho. Pior, mexia muito nos cabelos alisados artificialmente. Ferreira comentava: “Ih, mulher quando mexe muito no cabelo tá querendo é rola e pelo jeito o negócio é com o Amandinho”. Todos retrucavam como que defendendo as suas próprias candidaturas a macho alfa: “Cala essa boca babaca”! Mas o fato é que a situação foi se tornando mais grave a cada dia, até que Daysinha começou a cochichar longamente com Seu Juca. Assim que ela saía, todos cercavam o pobre português e o massacravam com saraivadas de perguntas. Seu Juca, homem simples porém de arraigadas tradições de cavalheirismo, dizia que não era polido revelar os segredos de uma dama. – “Aaah, que dama o cacete ô Juca..., conta aí”!!! Mas a boca do gajo transformara-se num túmulo. De uma outra feita, quando iam animados os cochichos, Tinguá deu um pulo e abaixou rapidamente o volume da televisão. Foi quando todos ouviram Daysinha dizer para o Juca:...”mas será que ele também gosta de mim?”. Pronto, foi o caos. Após Daysinha ir embora o bar se transformou numa praça Charles Muller em dia de derrota do Corinthians para o Bragantino. Todos xingando-se mutuamente, outros dizendo “eu falei! eu falei!!!”. Até um copo voou.


Com o tempo, até quem não acompanhou a situação desde o início já aparecia frequentemente no boteco para saber das novidades do caso. Estava mais divertido do que seguir novela!


Porém, ai porém, nem a mais obscura mente de um novelista, nem a fértil imaginação de Tinguá, seriam capazes de imaginar a cena que ocorreu tempos depois. Após um sumiço de algumas semanas, no esplendor de um sábado a tarde, Amandinho entra no boteco do Juca, com ar de triunfo, de braços dados com Daysinha e comanda com voz pausada e firme: “uma Caracu prá mim e um guaraná aqui pra minha Deusa”! Ferreira caiu da cadeira. Levantou-se rápido e saiu sem pagar os tremoços. Tinguá largou a rabada no meio e vazou em seguida. Até os poucos bebuns que jogavam dominó por ali deixaram o jogo inacabado e também partiram. Aquilo era uma afronta! Amandinho acabara de assassinar o sonho dos fins de tarde. Taxista de merda, filho da puta!!! Como isso era possível, pensaram todos ao se reunir na esquina seguinte para os comentários.


O fato é que o noivado foi rápido, daqueles só no portão, com pai e mãe aprovando e logo em seguida ocorreu uma cerimônia de casamento bastante simples. Amandinho e Daysinha juntaram as escovas de dentes. Apenas Seu Juca foi convidado.


Hoje em dia Amandinho não aparece mais no bar. Tampouco Daysinha. Mas os freqüentadores de sempre não conseguem esconder um ar de satisfação quando percebem que Amandinho chega em casa cada vez mais cedo, isso quando não dá umas incertas durante o dia, estaciona o Santanão já meio combalido e sujo em frente ao bar, espia se todos estão lá dentro e depois dá algumas voltas no quarteirão antes de voltar para o ponto. Todos percebem a sua barba por fazer e seu olhar triste. Já Daysinha, usa calças cada vez mais brancas e está cada dia mais linda e feliz.