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terça-feira, 9 de outubro de 2012

CONTO NOVO!


O AUTO DO AUTO

 

 

- “Isso eu sei fazer”, era a sua frase predileta.

Mais observador que uma coruja, desde pequeno ele aprendia a fazer coisas complicadas, que exigiam notável habilidade manual, apenas olhando os outros fazendo.

Nunca comprou casinha para os seus cães. Construiu todas desde os 8 anos de idade.

Abriu despertadores, apenas para saber o que continham.

Se gostasse de um brinquedo, fazia um igual. Ou quase.

Tinha evidentes habilidades em marcenaria, encanamento, pintura, física nuclear, raspagem de paredes, machetaria, mosaico, acupuntura, mecatrônica, bordado e chilreado. Sem contar centenas de outras.

Aos 15 comprou uma maquininha de barbeiro e aprendeu a cortar seu próprio cabelo.

Odiava depender de quem quer que fosse. Era um autodidata, um autossuficiente de carteirinha e gostava de se apresentar como um Especialista em Generalidades. Até de pagar por serviços tinha ogeriza. – “Se eu posso aprender a fazer ou consertar, vou pagar por que?” – dizia.

Tocava cavaquinho, violão e pandeiro sem nunca ter freqüentado uma aula de música. Aprendeu inglês indo ao cinema e evitando as legendas.

Sua extensa plêiade de habilidades fizeram com que se desse bem na vida. Principalmente por ser um profissional eclético, um executor geral, um “topatudopordinheiro”. Se não sabia ia procurar aprender.

Seu santo de devoção era o São Google.

Era um vizinho boa praça, meio que “faztudo” do prédio. Daqueles que consertam torneiras, instalam chuveiros e computadores para senhoras aposentadas entrarem no facebook.

Conversava com muitas mulheres, longamente. O fato é que elas nunca estavam presentes na conversa. Inventava longos papos e falava animadamente com pessoas fictícias, em situações mais fictícias ainda. Até na rua falava sozinho.

Quando precisava falar com pessoas reais, travava.

Teve algumas poucas namoradas que logo o abandonaram em razão de sua introspecção. – “Ele vive num mundinho fechado” é o que diziam, sem compreender a vastidão de seu universo interior.

Gostava de não depender de mulher nenhuma e se vangloriava disso. Se nunca dependeu da mãe, a não ser para sobreviver aos primeiros meses, não iria depender de nenhuma outra mais.

- “Você não sente falta de estar com uma mulher, cara???” perguntavam os amigos. A resposta era sempre um sonoro “não”! Desenvolveu técnicas de masturbação incrivelmente variadas e prazeirosas. Pensou até em escrever um manual, um “Kama Sutra for Singles”.

Suas experiências erótico/sensoriais foram a porta de entrada para o universo da medicina e da odontologia. Passou a ser um voraz leitor de bulas. Dava conselhos na área. Só ia ao médico ou ao dentista em situações desesperadoras. Aprendeu a obturar as próprias cáries, cauterizar as próprias verrugas e recolocar no lugar seus dedos destroncados. No varejo, resolvia tudo sozinho.

Foi descoberto pelo cheiro, em seu exíguo apartamento, uma semana após sua morte. Estava envolto em uma poça de sangue seco e com uma extensa incisão na barriga, em avançado estado de decomposição. Na mão direita um estilete.

Morreu de hemorragia abdominal tentando, dizem, extirpar o próprio apêndice.

 

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